Quem é a mulher por trás da criação da vacina da AstraZeneca

Sarah Gilbert se destacou pela agilidade no desenvolvimento do imunizante contra Covid-19, com um trabalho que serviu de base para o mundo
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Quem é a mulher por trás da criação da vacina da AstraZeneca
A pesquisadora Sara Gilbert, 59, liderou a equipe que desenvolveu a vacina Oxford/AstraZeneca contra a Covid-19

Quando o novo coronavírus começou a se espalhar e assustar o mundo todo, em fevereiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deu o recado: evitar a transmissão do vírus até a criação de uma vacina. A partir disso, começou a corrida dos laboratórios para desenvolverem imunizantes contra a Covid-19. 

A Universidade de Oxford (Inglaterra) saiu na frente e, em janeiro do mesmo ano,  em março do mesmo ano, deu início aos primeiros testes laboratoriais de uma vacina desenvolvida em parceria com a farmacêutica anglo-sueca AstraZeneca. Em novembro de 2020, os testes finais já estavam nas fases finais e a revista The Lancet publicava dados que comprovaram a eficácia da vacina Oxford/AstraZeneca.

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A criação de imunizantes seguros e eficazes em pouco menos de um ano foi uma grande conquista da ciência humana. Mas nesse caso, o triunfo do imunizante anglo-sueco só foi possível por causa da agilidade e trabalho de décadas feito por Sara Gilbert, uma tímida e determinada professora de Oxford, que já comandava seu grupo de pesquisa na elaboração da vacina e dos testes em janeiro de 2020.

Filha de uma professora de inglês e de um gerente de uma loja de sapatos, Sarah nasceu em abril de 1962, na cidade de Kettering, na Inglaterra, onde estudou até terminar o colegial. Interessada em seguir na área médica, Sarah completou a graduação em ciências biológicas em 1983, na universidade inglesa de East Anglia.

Apesar de colegas da época da escola comentarem que Sarah era uma garota quieta, também ressaltam sobre sua determinação, o que é refletido em seu histórico de notas excelentes. A mãe da pesquisadora também fazia parte do coral amador da cidade, um dos fatores que incentivou Sarah a praticar oboé, na época escolar, e saxofone na universidade. Em entrevista ao programa “Perfile”, da BBC, uma amiga da faculdade conta que Sarah praticava saxe na floresta, para não atrapalhar ninguém nos dormitórios.

Logo depois ingressou no curso de Phd, o equivalente a um doutorado, na Universidade de Hull, também na Inglaterra, seguindo a área de genética e bioquímica. No entanto, em entrevista ao programa A Vida Científica, produzido pela BBC, Sarah diz que percebeu que o foco em uma única área não era de seu agrado. 

“As descobertas são feitas até nos limites das disciplinas. Gosto de pegar ideias e tecnologias de áreas diferentes e usar todas juntas”. Na época, a estudante considerou largar a vida acadêmica, mas sua determinação falou mais alto e decidiu terminar o PhD como a última meta na carreira científica. 

Ao terminar o doutorado, Sarah precisava de dinheiro e decidiu aplicar para uma vaga de emprego na área que tinha estudado. Assim, ela conseguiu uma posição no Centro de Pesquisa Cervejeira, onde estudava como manipular a levedura. 

Apesar de parecer distante da área médica, isso a levou a um posto de pesquisa no Biocentre Leicester, em que investigava técnicas de biologia molecular para estudar a expressão de proteínas em leveduras, o que poderia ter diversas aplicações para a saúde humana. 

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Entre 1990 e 1994, Sarah trabalhou em uma pequena empresa de biotecnologia, a Delta, mas a companhia foi vendida e sua pesquisa suspensa. Logo em seguida, ela conseguiu um emprego na área acadêmica da Universidade de Oxford, como bióloga molecular no departamento de medicina da instituição. Sua atividade era pesquisar a genética da malária, o que a levou trabalhar no desenvolvimento de vacinas contra a doença. 

A malária é uma doença causada pela presença do parasita Plasmodium no sangue, transmitido por mosquitos e que causa febres intermitentes. “Precisava ser uma vacina mais eficiente, com forte estímulo de resposta em células T”.

Apesar de ainda não existir uma vacina contra a malária, o conhecimento de Sarah para criar imunizantes foi se aprimorando e toda sua trajetória passou a ser voltada ao desenvolvimento e aos testes pré-clínicos. O método utilizado por Sarah para produzir vacinas usa um vírus vivo, que não tem capacidade de se replicar no organismo humano ou prejudicar a saúde. 

Com o uso de engenharia genética, os cientistas modificam  esse vírus seguro, para passar a carregar em si informações necessárias para produzir proteínas do agente patogênico. Assim, quando o vírus modificado é absorvido pelas nossas células, elas passam a estimular a resposta imunológica contra essas proteínas, mas não é capaz de gerar o estado de doença. Esse tipo de imunização induz uma resposta das células do sistema imunológico (do tipo T), que pode ser usada contra doenças virais, malária e câncer. Apesar disso, ela conta que “nunca imaginou que iria trabalhar com vacinas”. 

Nesse meio tempo, sua vida ficou um pouco mais complicada quando deu à luz  trigêmeos.  Em uma revista da Universidade de Oxford, ela conta que “uma das coisas boas de ser cientista é que as horas não são fixas, então há flexibilidade para quem tem filhos. Mas também existem os momentos em que surgem compromissos importantes e você precisa fazer sacrifícios”. 

Apesar de ser comum que muitas cientistas mulheres interrompam suas pesquisas para cuidar dos filhos, Sarah foi exceção à regra: em 1998, seu companheiro interrompeu a carreira para cuidar dos bebês, pois, na época, Sarah era quem recebia o melhor salário entre os dois. “Foi um período muito curto, só enquanto as crianças eram muito pequenas, mas era o mais lógico a se fazer”, ela contou em entrevista à BBC. 

Criar os trigêmeos ao mesmo tempo que se dedicava à carreira não foi fácil. Amigos sugerem, em uma entrevista no podcast “Perfile”, da BBC, que a experiência explica a “abordagem objetiva” que a microbiologista demonstra em seu trabalho. No mesmo programa, um de seus filhos, Freddie, descreve a mãe como uma pessoa apoiadora e que sempre os incentivou a tomar suas próprias escolhas. Ainda assim, os três, atualmente, estudam bioquímica na universidade e foram voluntários para testar a vacina AstraZeneca nos primeiros testes na Inglaterra. 

Em 2007, Sarah entrou com um pedido para fundar um grupo de pesquisa para desenvolver a mesma tecnologia para uma vacina universal contra a influenza A, um dos vírus que provoca a gripe comum. Rapidamente, subiu na carreira de pesquisadora e ingressou no Instituto Jenner, vinculado à universidade de Oxford, onde liderou a equipe que desenvolveu a vacina contra a Covid-19. 

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Outros surtos endêmicos de novas doenças não passaram despercebidos pela vacinologia. Logo após a eclosão dos casos de ebola no continente africano, em 2013, Sarah esteve à frente do primeiro ensaio de vacina contra a doença. O surgimento da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), outro coronavírus que causou uma grande epidemia na região entre 2012 a 2015, também contou com as atividades de Sarah para criar um imunizante, usando a mesma tecnologia do vírus seguro. 

Em 2018, Sarah iniciou uma campanha de arrecadação para melhorar os locais de produção de vacinas em países com recursos limitados. A campanha arrecadou 7 milhões de libras, equivalente a mais de R$ 50 milhões.  “É muito importante pensar em todos os passos da criação de uma vacina logo no início do processo. Podemos criar uma vacina que seja fantástica no laboratório, mas se não puder produzi-la ou provar que é segura para humanos, ela nunca vai fazer nada”. 

Durante o segundo teste da vacina contra MERS, em dezembro de 2019, um outro coronavírus desconhecido começou a se espalhar pela província de Wuhan, na China, e o resto da história já conhecemos. O novo coronavírus (Sars-Cov-2) se tornou um problema global, causando milhões de mortes no mundo todo, sobrecarga dos sistemas hospitalares, cemitérios com superlotação, paralisação da economia, incertezas quanto ao futuro, quarentenas e muita desinformação. 

No entanto, ainda é pouco conhecido o fato de que Sarah viu a situação já em janeiro de 2020 e decidiu agir rápido, antes mesmo da nova doença, a Covid-19, se espalhar para fora do continente asiático. Assim, a pesquisadora reuniu seu grupo de pesquisa no Instituto Jenner para começar a pensar em uma resposta rápida. E realmente foi rápido. 

Uma vez que a equipe já trabalhava com um imunizante contra um tipo de coronavírus, começaram a adaptar o estudo contra MERS para criar uma vacina para a nova doença, aproveitando a tecnologia e estudos anteriores. “Assim que o código genético do vírus foi divulgado, começamos a trabalhar no desenvolvimento da vacina. Em três dias já tínhamos desenhado os estudos laboratoriais e clínicos”, ela conta. Isso ainda em janeiro de 2020! 

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A agilidade da pesquisadora é comprovada por seus colegas. “Os e-mails com a proposta chegaram logo, às 4h da manhã”, diz Teresa Lambe, que trabalhou ao lado de Gilbert no desenvolvimento do imunizante. À BCC, ela explica que a professora  costuma trabalhar desde muito cedo pela manhã até tarde da noite.

Como Sarah relatou ao podcast, “a ciência não trabalha com grandes descobertas, elas são construídas com longos processos anteriores, em que tudo tem que ser feito corretamente”. As adaptações da tecnologia para o novo coronavírus levaram algumas semanas para apresentar resultados nos testes laboratoriais. No caso, foi usado como vírus seguro o adenovírus, que provoca o resfriado comum. Em abril, a AstraZeneca já produzia o primeiro lote para dar inícios aos testes clínicos, à medida que os resultados foram  aprimorados e o rigoroso regime de testes se expandia. 

“Desde o início, estamos vendo a situação como uma corrida contra o vírus, não uma corrida contra outros desenvolvedores de vacinas”, disse ela no início deste ano. “Somos uma universidade e não estamos nisso para ganhar dinheiro”, comenta Gilbert. 

No final de junho deste ano, o mundo noticiou a homenagem que Sarah recebeu em Wimbledon, maior torneio de tênis da Inglaterra. A pesquisadora parecia tímida e teve uma reação contida enquanto recebia os aplausos do público.  A bioquímica Dra. Anne Moore, colega de Sarah, explicou ao programa “Perfile” que “Sarah é a pessoa na sala que não quer estar no centro das atenções.”

Fato é que Sarah Gilbert chamou a atenção pelos seus feitos na pandemia de Covid-19. Recentemente ela concedeu diversas entrevistas sobre a vacinação, a variante Delta em muitos jornais mundo afora. E o reconhecimento por seu trabalho com a vacinologia não será esquecido tão cedo.

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