Conheça Elizandra Cerqueira, que descobriu na gastronomia um caminho para empoderar as mulheres de Paraisópolis

Com o Mãos de Maria, a empreendedora já capacitou mais de 4.000 moradoras da comunidade
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Elizandra Cerqueira, uma das fundadoras do Bistrô Mãos de Maria. (Foto: Divulgação)

A vontade de mudar o olhar da sociedade sobre as favelas brasileiras sempre fez parte do objetivo de vida de Elizandra Cerqueira, 33 anos. A baiana, que mora em Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo, desde que tinha apenas um ano de idade, sonha com o dia em que o potencial de negócio e de empreendedorismo das comunidades do Brasil seja mais valorizado. E para fortalecer e construir essa realidade, fundou o Bistrô Mãos de Maria, localizado em uma das lajes mais charmosas da segunda maior favela da capital paulista.

Com mais de 100 mil habitantes, Paraisópolis é também a quinta maior comunidade do país. É lá, em uma das mais de 18 mil lajes, que o restaurante de Eli, como gosta de ser chamada, e de sua sócia, Juliana Costa, foi criado. Por lá são servidas comidas caseiras a preços populares, além da tradicional feijoada aos sábados.

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Mas antes de se tornar um bistrô, o Mãos de Maria já era um projeto de empoderamento feminino e transformação social. Ele surgiu em 2007 e, então, ainda não era um modelo de negócio. O intuito era capacitar e garantir a independência financeira, por meio da gastronomia, das mulheres da favela, principalmente as que estavam em situação de vulnerabilidade social. “Começamos para que as mulheres da nossa comunidade pudessem empreender. Naquela época, fizemos o primeiro curso de formação para ajudá-las a alcançarem a independência financeira”, conta Eli, revelando que a iniciativa foi batizada em homenagem às alunas da primeira turma, já que mais da metade delas tinha Maria no nome. 

Anos depois, o projeto se consolidou e evoluiu também para uma buffet, onde as mulheres envolvidas prestavam serviços para empresas de eventos. O bistrô só nasceu em maio de 2017, quando o Mãos de Maria se tornou um empreendimento e passou a ocupar a laje da União de Moradores de Paraisópolis.

Uma realidade em transformação

Filha de empregada doméstica e pedreiro, Eli diz que desde a adolescência esteve envolvida em projetos sociais e trabalhos comunitários para mudar a realidade ao seu redor. Foi presidente do grêmio estudantil no colégio onde estudava e, anos depois, passou a integrar a União dos Moradores de Paraisópolis. O  objetivo era sempre o mesmo: transformar. 

Aos 28 anos, em 2016, foi eleita presidente da Associação das Mulheres de Paraisópolis, cargo que ocupou até o fim do ano passado. Também é formada em Publicidade e, com sua rede de conhecimentos, já ajudou muitas mulheres a conseguirem um emprego.

“Sou muito grata por ter conseguido uma bolsa de estudos para fazer a faculdade. Desde a escola, quando comecei a atuar na minha comunidade, eu percebia os vários obstáculos que a gente enfrentava. Um deles era como as pessoas de fora enxergavam o nosso bairro. Aquilo me incomodava – e ainda incomoda, porque acontece até hoje, mas bem menos. Antigamente, muitas pessoas precisavam mentir sobre o local de moradia em entrevistas de emprego ou no próprio currículo. Se falassem que eram de Paraisópolis, as portas se fechavam. Eram vistas como marginais. E eu sempre quis mudar essa realidade”, conta. 

Desde o início do Mãos de Maria, mais de 4.000 mulheres já foram capacitadas na área de gastronomia. Parte da renda obtida com o restaurante é utilizada para capacitar outras mulheres. 

O empreendedorismo como um caminho

Eli lembra exatamente de quando enxergou que o empreendedorismo podia ser um caminho e um modelo de negócio para tocar a sua vida e inspirar outras mulheres. 

Enquanto ocupava a presidência da Associação das Mulheres de Paraisópolis, foi vítima de violência doméstica. “Acabei, infelizmente, entrando em um relacionamento abusivo e quase virei estatística de feminicídio. O triste é que eu já tinha informação sobre o assunto e até possuía uma rede de apoio, diferente de muitas mulheres que passam por essa situação, mas sentia muita vergonha”, conta. 

Elizandra e Juliana Costa no Bistrô Mãos de Maria. (Foto: Divulgação)

Ela diz que o Mãos de Maria surgiu para ser o ‘sim’ para as mulheres que vivem ouvindo ‘não’. “Esse foi o momento em que me tornei uma empreendedora social. Foi quando eu e a Juliana vimos a possibilidade de montar um bistrô e contratar a mão de obra que estávamos qualificando, as mulheres da periferia.”

Ela diz que o empreendedorismo surgiu para ela num momento de necessidade. “E, quando vimos, a laje estava pronta e bonita. Pensamos, então, em receber pessoas de fora e da própria comunidade. Acho que foi naquele momento que tivemos a noção de que poderíamos ajudar mais essas mulheres e, além de capacitar, gerar empregos.” 

Em 2021, as sócias também inauguraram o primeiro quiosque do Mãos de Maria, mais uma vez na comunidade. “Vendemos os produtos das Marias. Pimenta, panetones, sequilhos e outros.”

Pandemia e combate à fome

No início da pandemia da Covid-19, assim como grande parte dos negócios, o Mãos de Maria precisou parar. Além do restaurante fechar as portas, o buffet foi suspenso e as capacitações encerradas. “Ficamos com muito medo de nunca mais voltar a funcionar, já que o nosso espaço estava fechado. Percebemos que não existia home office para a favela, principalmente para as mulheres”, relata Eli. 

Nesse período de incertezas, ao perceber que a crise sanitária tinha causado um impacto econômico devastador, principalmente nas periferias, ela e a sócia decidiram montar um projeto de combate à fome em Paraisópolis, já que muitas pessoas estavam sem emprego e, consequentemente, sem comida. Em parceria com o G10 favelas, bloco de líderes e empreendedores de impacto de comunidades brasileiras, elas começaram a fornecer marmitas gratuitas aos moradores mais vulneráveis da comunidade.

“Começamos uma operação de guerra e contamos com os recursos e doações de empresas e de pessoas físicas para ajudar quem estava com fome, ao mesmo tempo que remunerávamos as mulheres que estavam trabalhando na cozinha.”

Projeto de combate à fome já distribuiu 2 milhões de marmitas até outubro de 2021. (Foto: Eduarda Esteves)

Mesmo em crise, o projeto ajudou a empregar mais de 200 mulheres e distribuiu 2 milhões de marmitas até outubro de 2021. Atualmente, as doações ainda são feitas, mas de forma reduzida. 

Ainda durante a crise sanitária, o Mãos de Maria criou uma plataforma online para capacitar mulheres na produção de marmitas. Todo o conteúdo era passado pelo telefone, o que garantia que elas pudessem ficar em casa. “A ideia era capacitá-las para que trabalhassem mesmo de dentro de casa, enquanto estavam desempregadas. Foram 55 mulheres capacitadas via celular”, conta. 

Para ajudá-las no início do negócio, Eli conta que o G10 e o Mãos de Maria compraram toda a produção das marmitas durante um mês e meio. As mulheres também ganharam uma cozinha toda nova, com geladeira, fogão e panelas. “No fim da capacitação, elas estavam estruturadas para tocar um empreendimento na área da alimentação”, conta. “A gente vem ao longo dos anos lapidando essas mulheres e mostrando que, por meio desse negócio, elas podem escrever uma nova história, mudar a vida delas e ter um futuro melhor.” 

Nem tudo são flores

Com o avanço da vacinação contra a Covid-19 e a liberação de funcionamento de restaurantes em São Paulo, o bistrô já reabriu. Mas ainda tenta recuperar o antigo fôlego. 

Eli lembra que os desafios da vida do empreendedor são diários, principalmente quando se trata de um negócio inserido numa favela. “Existe todo um trabalho de desconstruir o preconceito que as pessoas têm em relação ao que vem da periferia. Por muitos anos, eu vi muita gente trazendo as coisas para dentro da comunidade. Hoje, pelo menos aqui em Paraisópolis, já não é mais assim. Temos muito o que dividir com o mundo, da comunidade para fora. Criamos ferramentas e ações para fomentar isso.”

Mas a realidade não é um mar de rosas. “É difícil conseguir fornecedor e precificar o seu trabalho porque sempre tem alguém que acha que, porque é da favela, precisa ser de graça ou barato e duvida da qualidade do produto. Mas batalhamos todos os dias para ocupar o nosso espaço, sabemos do potencial de consumo das favelas e as pessoas precisam enxergar isso.”

Apesar do preconceito ainda existente, um levantamento divulgado em 2020 pelos institutos Data Favela e Locomotiva mostrou que áreas periféricas no Brasil geram R$ 119 bilhões por ano. Para efeito de comparação, esse número é superior ao rendimento de 20 das 27 unidades da federação. 

Mulher, periférica e empreendedora de sucesso, Eli também sabe da responsabilidade que carrega. Ela  é uma inspiração para muitas mulheres de Paraisópolis. “Elas olham para mim e me veem como uma referência. Se eu sou mulher, moro na periferia ainda hoje e consegui ter um negócio, elas também podem. Eu costumo dizer que sou uma soma de mulheres incríveis que trabalham comigo.”

Por seu trabalho, Elizandra recebeu, em 2018, o prêmio Women Stop Hunger em Paris, promovido pelo instituto Stop Hunger, organização que luta contra a fome e pelo empoderamento das mulheres.

Expansão dos Mãos de Maria é a meta para 2022

O sonho é continuar empreendendo, não só em Paraisópolis, mas também em outras comunidades do Brasil. Eli detalha que o Mãos de Maria está passando por uma expansão. A iniciativa vai ter uma sede em Heliópolis, considerada a maior favela de São Paulo. “As obras estão sendo finalizadas e devemos inaugurar o espaço em breve”, diz. 

As negociações para ocupar um espaço na comunidade Jardim Teresópolis, em Betim, Minas Gerais, também estão avançadas. Até a metade do próximo ano, o Mãos de Maria deve ser inaugurado em mais oito comunidades brasileiras. “Queremos ter, ao todo, 10 espaços espalhados pelo Brasil. Estamos conversando com pessoas de Pernambuco, Pará, Distrito Federal, Maranhão e Amazonas”, adianta. 

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