Em busca de recomeço, mulheres apostam em cursos intensivos e migram para tecnologia

Depois de participar de bootcamps de programação, elas conseguiram o primeiro emprego e estão fazendo carreira na área
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Sara Fogo foi contratada durante a pandemia (Foto: Arquivo Pessoal)

Sara Fogo, 29 anos, trabalhava como atendente em um café nas proximidades do Porto Digital, um dos principais pólos tecnológicos do Brasil, localizado no Recife, capital pernambucana. Entre um atendimento e outro, uma cliente em especial sempre conversava com ela sobre o futuro profissional e como a área de tecnologia estava crescendo no Brasil. O ano era 2019 e, naquela época, Sara tinha acabado de trancar a faculdade de letras por falta de identificação com o curso. 

A jovem já havia trabalhado como recepcionista e agente de vendas, mas nada disso era empolgante o suficiente ou garantia uma boa remuneração. Como a localização do café era estratégica, muitos homens e mulheres que trabalhavam no pólo tecnológico apareciam por lá todos os dias. Sara lembra que começou a perceber que eles não tinham o estereótipo que ela imaginava. “Eu achava que era uma área repleta de nerds, pessoas apaixonadas por matemática e física, mas descobri um outro lado. Na verdade, pareciam pessoas comuns. A cliente com quem eu conversava sempre e já era da área me incentivou a estudar tecnologia. Foi então que tive o primeiro contato com programação”, conta.

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Sara começou a se aprofundar no tema assistindo vídeos gratuitos sobre a linguagem python. Quando percebeu que o assunto não era o bicho de sete cabeças que imaginava, decidiu se inscrever num treinamento intensivo, da Reprograma, startup social que ensina programação para mulheres. 

Uma vez aprovada, ela se jogou nos estudos durante quase quatro meses. Pouco tempo depois do fim das aulas, ainda durante a pandemia de Covid-19, conseguiu o primeiro emprego na área. Hoje atua como analista júnior na Avanade, consultoria multinacional de soluções inovadoras no digital e na nuvem. “O bootcamp que fiz é totalmente gratuito e todas as professoras são mulheres. Foi um processo muito importante para mim, porque todas as envolvidas têm um censo de sororidade e estiveram muito disponíveis para trazer outras mulheres para a tecnologia, que ainda é uma área muito machista”, diz.

Barreiras no mercado de trabalho

Que o mercado de trabalho, em geral, é machista não é nenhuma novidade. Mas quando o recorte é na área de tecnologia, os números mostram uma diferença de gênero ainda maior. No Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), apenas 20% do total de profissionais de TI são mulheres.

Uma outra pesquisa, desta vez feita pela empresa de recursos humanos Revelo, mostrou que a diferença de remuneração oferecida para homens e mulheres no setor de tecnologia era de 22,4% em 2017 e subiu para 23,4% em 2019. A média da proposta de salário das mulheres em 2019 era de R$ 5.531, enquanto no caso dos homens esse valor chegava a R$ 6.829.

Liana começou a estudar tecnologia em 2020 (Foto: Divulgação/Martina Camini)

Na contramão dessas estatísticas está Liana Alice, 30 anos, que decidiu recomeçar a vida profissional – e optou pela tecnologia. Por ser uma mulher trans, os desafios foram maiores. Um outro levantamento da Revelo mostra que pessoas cisgêneros (as que se identificam com o gênero de nascimento) levam cerca de 30 dias para conseguir uma vaga de emprego na área da tecnologia. Já transgêneros, com a mesma capacitação, podem demorar até dois anos para ingressar no mercado. 

Natural de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, Liana começou a estudar tecnologia em 2020. A ideia era conseguir um trabalho estável e com bom salário. Desde a transição de gênero, ela já tinha trabalhado com teatro, recreação infantil, comércio de rua, mas nada fixo. “Descobri esses cursos rápidos, me inscrevi no bootcamp da Reprograma e fui aprovada”, lembra. 

Liana estudou por quatro meses e, em seguida, recebeu o convite para se tornar professora do curso. Hoje, além de ensinar programação para outras mulheres, ela também é desenvolvedora na Koodari, uma consultoria de tecnologia e inovação.

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Apesar de ter escolhido o mercado da tecnologia só no ano passado, Liana diz que já havia tentando entender programação outras vezes, mas achava que nunca conseguiria aprender os códigos. “Eu não sentia que os eventos que frequentava eram preparados para todos os públicos, principalmente mulheres e iniciantes. Parecia tudo muito complicado”, afirma. 

Por ser uma mulher trans, ela também tinha medo dos estigmas, da falta de estrutura e de enfrentar hostilidades no setor. Por isso, quando descobriu o bootcamp, não pensou duas vezes. “O que eu acho mais legal é que essa é uma comunidade acolhedora. Nesses nichos é possível entender melhor qual caminho seguir no mercado, existe uma paciência e um cuidado maior do que em outros espaços. É importante que as mulheres entendam que, muitas vezes, não é preciso cursar uma faculdade para encontrar um emprego em TI. Fico feliz hoje de ser uma inspiração e ter uma estabilidade que muitas mulheres e trans querem e precisam.”

Liana reconhece que falta qualificação e sobram vagas, mas pondera que as mulheres precisam ter mais confiança. “Quando uma mulher vai concorrer a uma vaga em TI e percebe que não tem todas as qualificações exigidas, ela já desiste. Diferente dos homens, principalmente os brancos e heterossexuais, que enviam o currículo mesmo sem ter nenhuma das habilidades solicitadas. E muitas vezes conseguem o emprego, justamente por essa autoconfiança”, diz.

O desejo de Liana para os próximos anos é continuar estudando programação e suas mais diferentes linguagens, além de atrair outras mulheres trans para a área de tecnologia. “A internet proporciona uma visibilidade importante. E agora eu sei que não sou a única mulher trans nesses espaços.”

Bootcamps podem ser saída para diminuir gap no setor

Há mais de uma década no mercado de tecnologia, Priscila Araujo, gerente de produto na Avenue, corretora norte-americana focada em atender brasileiros que buscam investir nos Estados Unidos, já passou por empresas como Microsoft e Itaú, onde foi líder de um comitê de diversidade voltado para o ingresso de mais mulheres na empresa. 

Priscila Araujo, gerente de produto da Avenue (Foto: Arquivo Pessoal)

A  especialista em TI destaca que cursos intensivos, como os bootcamps, podem ser uma das saídas para atrair mais mulheres para este mercado. “Para trabalhar com tecnologia da informação você não precisa ter necessariamente a formação em uma faculdade. Nesse ponto, a área é bem democrática. Os cursos mais curtos fazem muito sentido e são ótimos para o mercado de trabalho, uma vez que conseguem atualizar o conteúdo muito mais rápido do que uma graduação, por exemplo, em que há toda uma burocracia com as ementas”, explica. 

A Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e de Tecnologias Digitais (Brasscom), estima em seu último relatório que, até 2024, o gap – ou seja, a falta de profissionais do setor – será de 260 mil.

Para suprir essas lacunas, Priscila diz que as empresas precisam continuar apostando na diversidade dos funcionários, seja de raça, gênero, idade ou sexualidade. “O espaço não é só dos homens, é nosso também. Tem muito estigma de que mulheres só são boas para fazer gestão – e não a parte técnica. Precisamos desconstruir isso, não quero que outras meninas sofram tudo que eu já passei no meu início”, conta. 

“Eu já sofri e ainda sofro preconceito, mesmo já tendo mais de uma década de experiência. Só que hoje sinto que tenho a voz que não tinha no começo. Eu lembro que sempre achava que a errada era eu. Que eu tinha que aceitar o que ouvia. Mas o tempo me fez aprender sobre a minha importância, e por isso ajudar outras mulheres me motiva”, acrescenta. 

Priscila revela, ainda, que a tecnologia começou a ser uma área machista a partir dos anos 1990. “Uma informação pouco conhecida, mas que vale a pena ser compartilhada, é que o mercado de tecnologia nem sempre foi dominado por homens. Historicamente, as primeiras turmas de ciência da computação nas universidades brasileiras, na década de 1970, eram compostas por mais de 70% de mulheres. Além disso, tem toda a história que as mulheres tiveram ao redor do mundo no desenvolvimento tecnológico. Tudo isso foi ocultado ao longo das décadas. Uma das teorias para justificar esse apagamento da presença feminina está associada ao lançamento dos primeiros computadores pessoais, na década de 1990. As propagandas sempre apresentavam um menino brincando com o computador, excluindo as meninas.”

Para as mulheres que querem entrar nesse mercado, Priscila recomenda a área de desenvolvimento, justamente pela carência de profissionais. “É essencial não parar de estudar e não desistir. Não é fácil e, no começo, parece que você não vai conseguir. Aprender a programar é um processo como qualquer outro e precisa ter paciência.”

Veja, a seguir, alguns projetos de profissionalização em tecnologia da informação que atendem mulheres:

Elas Programaminiciativa que tem o objetivo de aumentar a participação de mulheres no mercado de tecnologia.

Laboratória – organização focada na capacitação de mulheres na América Latina com um bootcamp de seis meses exclusivo para mulheres.

Minas Programam – programa criado em 2015 para desafiar os estereótipos de gênero e de raça que influenciam a relação das mulheres com as áreas de ciências, tecnologia e computação.

Pyladies
– comunidade mundial que foi trazida ao Brasil com o propósito de ajudar mais mulheres a se tornarem participantes ativas e líderes na comunidade open source python.

Reprograma – iniciativa de impacto social que ensina programação para mulheres cis e trans que não têm recursos e/ou oportunidades para aprender a programar.

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