Sushiwomen: três chefs que quebraram a tradição da gastronomia asiática

Por muito tempo, boato sobre a temperatura da mãos femininas impediu que as mulheres atuassem na cozinha japonesa
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Érica ministra cursos de sushi para turmas 95% femininas (Foto: Divulgação)

No Japão, país de origem do sushi, a gastronomia local não é coisa de mulher. Por lá, é comum alguns moradores afirmarem que a temperatura da mão feminina é maior que a dos homens, prejudicando a qualidade do peixe durante o preparo. Ainda segundo a “lenda”, isso aconteceria principalmente devido ao período fértil e à ovulação. 

A ciência, no entanto, desmente essa informação: na verdade, as extremidades das mulheres chegam a ser 1,5°C mais frias quando comparadas às dos homens, conforme experimento da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. Mesmo no período fértil, a variação máxima de temperatura chega a 0,5 °C. Ou seja, não há desculpa para excluir as mulheres do preparo da gastronomia oriental.

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Como se os dados não fossem suficientes, até hoje as chefs que escolhem se tornar sushiwomans precisam enfrentar as barreiras do preconceito nos restaurantes e cozinhas tradicionais. Inclusive no Brasil, a 17.370 quilômetros da capital japonesa.

“É machismo”

Chef Piti foi a primeira sushiwomen de Florianópolis (Foto: Divulgação)

Quando começou a se dedicar à preparação de sushis, há quase 25 anos, Priscila Fatima Celestino, mais conhecida como chef Piti, era uma das únicas mulheres a se arriscar nesse meio em Santa Catarina e a primeira da capital Florianópolis, segundo ela. O interesse pela gastronomia asiática nasceu do convívio com a melhor amiga, uma sansei que havia se mudado para o Japão por um ano para trabalhar. “Comecei a comer na casa dela e, quando abri um bar, passei a servir sushi como parte do cardápio”, conta. 

Enquanto ia tomando gosto pela preparação dos peixes, Piti foi se aperfeiçoando por meio de cursos. Assim, logo passou a fazer parte da cozinha de grandes restaurantes especializados da região, embora notasse que a presença de uma mulher causasse desconfiança entre alguns clientes. 

Inconformada com essa diferença de tratamento associada ao gênero, a chef chegou a questionar o próprio cônsul do Japão quando teve a oportunidade de cozinhar para a delegação japonesa no local onde trabalhava. “Primeiro ele elogiou muito meu preparo,  principalmente o shoyu, que tem algumas raízes bem asiáticas. Depois eu perguntei se havia diferença no gosto do meu sushi pelo fato de eu ser mulher. Ele sorriu e disse que era tudo machismo”, descreve. 

A afirmação do cônsul foi se comprovando no dia a dia de trabalho de Priscila. À medida que mais mulheres ingressavam no ofício ela passou a perceber que a presença feminina tinha muito mais a agregar. “É um conjunto de características. A comida e o clima ganham um ar mais fraterno, porque a mulher tem uma docilidade única que consegue passar para o alimento. Fora isso, ainda há a organização do ambiente e o respeito pelos funcionários, que entre elas também é maior”, afirma. Por causa disso, Pitt não pensa duas vezes para falar que prefere trabalhar acompanhada de outras sushiwomen. 

Ao acompanhar de perto a evolução da profissão nas últimas décadas, Priscila afirma que falta coragem para que as mulheres entrem nas cozinhas asiáticas. No entanto, não é sobre a falta de determinação a que ela se refere, mas sim à força para suportar e superar os desafios do setor. “Falta quem bata de frente com a tradição”, conclui. 

Medo do preconceito fez chef omitir a identidade por um ano 

Érica possui um delivery de sushis em Rio das Ostras, no Rio de Janeiro (Foto: divulgação)

No caso de Érica Santana, a paixão pelos sushis não foi instantânea. “Eu sempre achei muito bonito, mas quando provei pela primeira vez, detestei. Tive que acostumar meu paladar”, conta. Embora não tenha demorado para se apaixonar pelo gosto e preparo dos pratos asiáticos, na época ela trabalhava no ramo petroleiro do Rio das Ostras, Rio de Janeiro. Dessa forma, a mudança de carreira só foi acontecer depois que a carioca se tornou mãe pela primeira vez. “Minha filha precisou ficar internada por causa de um problema no pulmão e me frustrava muito não conseguir acompanhá-la naquele momento. Como meu ex-marido tinha um delivery de bebidas, eu acabei tendo essa ideia de vender os sushis junto”, conta. 

Logo de cara, a receita foi um sucesso na cidade, o que acabou incentivando Érica a buscar cursos e aperfeiçoamento na gastronomia japonesa. O único detalhe era que, ainda nessa fase, sua identidade permanecia anônima entre os clientes. “Eu não queria aparecer em foto, não queria nenhum tipo de exposição. Preferi que ninguém soubesse se era homem ou mulher fazendo a comida”, diz. Passou-se um ano até que a empreendedora finalmente revelasse quem estava por trás dos sushis. “Foi uma surpresa para muita gente, mas, àquela altura, eu já tinha ganho a confiança de muitos clientes que gostavam da minha comida.” 

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Ainda assim, ela conta que algumas críticas no Facebook a surpreenderam. Em seu perfil profissional, leu comentários de chefs – homens – dizendo que mulheres não podiam fazer sushi. “Disseram, ainda, que eu não teria a mesma disposição deles.” 

Como uma boa chef, a carioca transformou os limões em uma limonada – e acabou usando o preconceito como pretexto para ensinar outras profissionais a se tornarem sushiwomen. Com isso, hoje ela já possui mais de 1.000 alunos em seu curso online de sushi. Embora as aulas sejam abertas para ambos os gêneros, mais de 95% dos participantes são mulheres.“Passei a compartilhar minha história e meus conteúdos no Instagram (@sushiwomanbrasil) também, para incentivar. No meu caso, o sushi não foi só uma profissão, ele também me deu independência financeira. Então, quando sofri essas críticas, percebi que as mulheres não podem ficar escondidas”, afirma.   

Representatividade deixa a jornada mais fácil 

Ingrid chegou a se afastar da profissão devido a pressão (Foto: Divulgação)

Se as pedras no caminho insistem em aparecer para as mulheres que se aventuram pela tradição asiática, que dirá no caso das negras. Há quatro anos no mercado, Ingrid Mayara denuncia o racismo e o sexismo que chegou a sofrer dos próprios colegas de trabalho ao longo dos anos. “Me falavam para eu não fazer as coisas, para não encostar no peixe. Ou seja, me ignoravam na cozinha”, afirma. 

Foi trabalhando em redes de alimentação que ela teve contato com o universo do sushi pela primeira vez. Encantada pelas formas e sabores, Ingrid passou a reproduzir o que via os outros funcionários fazendo para aprender as técnicas envolvidas no processo. Assim, quando se mudou do Rio de Janeiro para São Paulo, passou a distribuir currículo como sushiwoman. 

Em seu primeiro emprego na capital paulista, veio o choque: na cozinha, eram só três mulheres para dezenas de homens. “Eu percebi que era um ambiente extremamente masculino e tradicional”, conta. “Além do preconceito por ser mulher, não confiavam em mim porque eu era nova na área. Fiquei sabendo de uma conhecida que desistiu de ser sushiwoman por causa dessa pressão”, completa. 

Apesar de nunca ter desistido completamente do sonho de se especializar e seguir na culinária japonesa, Ingrid conta que passou por algo parecido. No último ano, ela resolveu se afastar dos restaurantes devido à frustração com o tratamento que recebia. Mas quando recebeu uma proposta da rede Home Sushi Home Vitória, resolveu tentar novamente. “Eu vejo a presença feminina como algo necessário. Tem coisas que só nós percebemos, principalmente em relação ao capricho das montagens”, opina. 

O impacto da falta de representatividade no setor é tão expressivo que Ingrid acredita que, se tivesse tido o exemplo de outras mulheres na cozinha, poderia estar muito mais avançada na carreira. “Por causa da falta de confiança acabei perdendo tempo. Agora eu quero me especializar e, quem sabe, abrir meu restaurante daqui uns 10 anos”, afirma.

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