Com apagão de dados e pouca informação, violência patrimonial contra mulheres é quase invisível no Brasil

Considerado um crime pouco conhecido, a violência patrimonial ocorre quando o outro usa o dinheiro ou bens materiais para ter controle sobre a vítima; advogadas reclamam da falta de divulgação do assunto no país
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Maria do Carmo* foi casada por muitos anos com um homem que nunca a deixou trabalhar e ter uma independência financeira. Ele controlava tudo dentro de casa: as contas, o tempo de uso do telefone, dos eletrodomésticos e dizia que ela não precisava se preocupar com o futuro e nem com a aposentadoria porque ele estaria ali para ajudar. Maria também era proibida de estudar. O marido não gostava da ideia dela sair de casa sozinha.

“No início tudo era bom, eu sentia confiança. Mas, as coisas foram mudando. Até que ele saiu de casa e arrumou uma mulher mais nova. Aí as dificuldades começaram a aparecer. Fiquei sem dinheiro e perdida porque não sabia com o que trabalhar. Tive que batalhar muito depois para pagar o meu INSS e só aos 60 anos terminei os meus estudos”, lembra Maria. 

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Ela nunca ouviu falar no termo e você talvez também não, mas a situação que Maria do Carmo passou por décadas ao lado do marido é reconhecida juridicamente como violência patrimonial, um tipo de violência doméstica prevista na Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006).

A legislação a define assim: “Conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades”. 

“Trabalhei num caso em que a mulher sofreu agressão física, psicológica e patrimonial. Em uma briga, o parceiro gritou ofensas, apertou seu pescoço e destruiu seu celular. Ela conseguiu ir até a delegacia em seguida, registrou um boletim de ocorrência e obteve as medidas protetivas. Houve também um caso em que o casal teve filhos e eles combinaram que a mulher ficaria mais tempo sem trabalhar depois da licença, para cuidar do bebê. Mas, aos poucos, o parceiro passou a controlar todo o dinheiro e ela perdeu totalmente sua autonomia. O dinheiro não era considerado ‘da família’, mas apenas do marido. Em outro caso, menos comum, a mulher era a única responsável financeira da família. O marido não trabalhava fora, mas gastava muito e fazia dívidas pessoais e não dizia para quê. Quando ele ficava sem dinheiro para pagar as dívidas, usava de abuso psicológico, chantagens emocionais e tratamento de silêncio para que a esposa lhe transferisse o dinheiro”. Esses são alguns relatos de violência patrimonial narrados por Melissa Santana, advogada que integra o “Não Era Amor”, projeto que ajuda mulheres que estão ou saíram de relacionamentos abusivos.

Para resguardar situações como essas, a lei Maria da Penha tipifica diversos tipos de violências além da violência física: a psicológica, sexual e moral e patrimonial.

Em entrevista à Elas Que Lucrem, Melissa explica que a violência patrimonial dificilmente aparecerá sozinha. “Na grande maioria dos casos (para não dizer todos), ela vem acompanhada da violência psicológica, que está sempre presente nos relacionamentos abusivos. Então, se no relacionamento existe algum tipo de abuso psicológico, como ameaças, humilhações, manipulações, chantagens emocionais, esse já é um primeiro sinal”, diz. 

Crime ainda é desconhecido, mas controle do dinheiro da mulher é uma realidade no Brasil

Dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, mostram que foram recebidas 2.995 denúncias de crimes contra a segurança financeira com vítimas do sexo feminino em 2020. Para efeito de comparação, as denúncias de violência psicológica divulgadas pela mesma pasta somam 106,6 mil, no mesmo período. A advogada Melissa Santana destaca que o baixo número de casos registrados oficialmente se deve ao desconhecimento do assunto. 

“Há subnotificação, com certeza. Primeiro porque há pouca informação sobre esse tipo de violência. Dinheiro ainda é um tabu e denunciar um abuso financeiro e patrimonial é um tabu ainda maior. É muito comum mulheres serem desencorajadas a denunciar e, quando denunciam, são revitimizadas pela sociedade e pelo Judiciário”, critica a advogada.

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Ela lamenta ainda que esse é um tipo de abuso difícil de comprovar. “Se a mulher não conhece as finanças da família, não tem salário próprio ou não tem controle do salário, se o marido controla tudo, ela muitas vezes perde a coragem de denunciar por medo de não dar em nada”, reconhece Melissa. 

Um levantamento feito pela plataforma Evidências sobre Violências e Alternativas (EVA), do Instituto Igarapé, analisou que somente três estados diferenciam a violência patrimonial de outras formas de violência doméstica, sendo eles Mato Grosso do Sul, Pará e Rio Grande do Sul. A pesquisa indicou também que em 2018 foram 29.270 registros de violência patrimonial no Brasil.

Samantha Meyer, advogada especializada em Direito Constitucional critica o apagão de dados sobre o assunto no Brasil. “É algo que necessita ser repensado em nosso país para que possamos verificar, nos casos de violência contra a mulher, quais são de origem patrimonial, além de incentivar mais pesquisas sobre o assunto.

Como a violência patrimonial afeta as finanças da mulher

Com a pandemia da Covid-19 e o isolamento social, o índice de episódios de violência patrimonial no Brasil aumentou em 47%. Uma pesquisa encomendada pelo C6 Bank ao Datafolha mostrou que 24% das mulheres já foram agredidas verbalmente ou humilhadas em temas ligados às finanças (contra 17% dos homens).

Tatiana Naumann, especialista em Direito de Família e sócia da Albuquerque Melo Advogados, explica que o maior índice de violência patrimonial é contra a mulher por uma questão cultural. “Historicamente, os homens ganham mais que as mulheres e abusam desse poder econômico. Por isso, atendendo a uma demanda social, a Lei Maria da Penha tipifica a violência patrimonial como forma de violência doméstica”, diz.

A mulher em situação de violência patrimonial perde autonomia e independência financeira. Ou seja, se ela não tem o próprio dinheiro, passa a depender do parceiro para atender às suas necessidades mais básicas. E o pior, por não ter independência financeira, ela tem muito mais dificuldade para sair do relacionamento.

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“Os homens muitas vezes usam seus privilégios financeiros e do fato de serem mais bem sucedidos para praticar formas veladas de violência. Essa violência muitas vezes tem desdobramentos inclusive nas varas de família. Homens que, na grande maioria dos casos, estão em condição financeiramente superior usam o poder econômico para manter as mulheres como reféns de seus desmandos”, acrescenta Naumann.

Quais os sinais de violência patrimonial e como identificar

As especialistas pontuam que existem alguns sinais que podem ser identificados pelas mulheres para saber se estão sendo vítimas de violência patrimonial em suas relações.

Por exemplo, não saber sobre as finanças da família, não saber em quanto fica as despesas da casa, não ter controle do próprio salário, ser impedida de trabalhar ou convencida e com isso perder autonomia.

“Por fim, um sinal muito importante e que muita gente ignora é que se você tem dúvida se está ou não sofrendo algum tipo de abuso no relacionamento, isso já é um indício”, esclarece a advogada Melissa Santana.

Melissa conta que apesar dos avanços conquistados com a Lei Maria da Penha, ainda existe um obstáculo na legislação: as chamadas escusas absolutórias.

“Significa que crimes patrimoniais como furto, dano, apropriação indébita, estelionato, que são os mais comuns em contexto de violência doméstica, quando cometidos contra cônjuge, durante o casamento, não são punidos. Existem teses no sentido contrário, mas, infelizmente, esse é o entendimento majoritário. Cabe a nós, advogadas, invocar a Lei Maria da Penha e os tratados internacionais de proteção à mulher para pedir a não aplicação dessas escusas absolutórias em razão da situação de violência doméstica”, explica.

Como proceder em casos de violência patrimonial? Qual o melhor caminho para denunciar?

Se você leu essa reportagem e percebeu que é vítima desse tipo de violência ou conhece alguém que passa por essas situações, o primeiro passo é consultar uma advogada especializada no assunto para entender o tipo de violência enfrentada e qual procedimento mais adequado. 

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Em casos de denúncia ou emergência, você também deve ir a uma Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher ou a uma Delegacia de Polícia comum para registrar um boletim de ocorrência e pedir medidas protetivas de urgência.

Também é possível realizar a denúncia no telefone da Polícia Militar, o 190, e solicitar que uma viatura vá ao local. 

A vítima ou testemunha pode entrar em contato com a Central de Atendimento à Mulher, no telefone 180. O número fica disponível para receber denúncias 24 horas por dia, todos os dias da semana. Esses casos são direcionados para o Ministério Público ou delegacias responsáveis e a vítima recebe as orientações necessárias para lidar com a situação. 

Você também pode procurar a Defensoria Pública, a OAB do seu estado ou centros de atendimento jurídico gratuito.

*Nome fictício. A entrevistada pediu para que seu nome não fosse revelado.

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