Economia do cuidado: o que é o trabalho não remunerado que movimenta US$ 10,8 trilhões ao ano

Invisível para o mercado, execução de tarefas domésticas consome 12,5 bilhões de horas por dia
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O termo “economia do cuidado” se refere ao trabalho invisível executado por mulheres (Foto: FreePik)

Lavar, passar, preparar as refeições, limpar a casa e ainda auxiliar na rotina de filhos, companheiros e outros dependentes. Essenciais para a manutenção da vida como conhecemos hoje, as atividades ligadas ao cuidado foram herdadas por gerações de mulheres ao longo da história. Essas, por sua vez, apesar de não serem recompensadas por cuidar de tudo e de todos, acabam exercendo um papel primordial para fazer a roda girar. 

Cunhado na década de 1990, o termo “economia do cuidado” se refere a um campo de estudos que vem tentando trazer visibilidade para um trabalho que, na maior parte das vezes, é ignorado pela sociedade, como explica a economista Gabriela Mendes Chaves. “Esse sistema leva a mulher a executar jornadas duplas e até triplas de trabalho sem uma recompensa financeira ou emocional”, aponta. 

Quando contabilizadas, essas tarefas cotidianas exercidas por todas as mulheres do mundo somam cerca de 12,5 bilhões de horas por dia, de acordo com o  relatório “Tempo de Cuidar” divulgado pela organização Oxfam. Com isso, o valor real atribuído a esse tipo de trabalho seria de US$ 10,8 trilhões ao ano – uma economia 24 vezes maior do que a do Vale do Silício, o reduto da inovação mundial. 

Na prática, esses números impactam de forma incalculável a trajetória pessoal e financeira de praticamente todas as mulheres do mundo, já que o gênero feminino é responsável por mais de três quartos de todo o cuidado não remunerado no globo, de acordo com a mesma pesquisa. “É uma questão que envolve heranças culturais, alienação masculina para o problema e má distribuição de serviços no âmbito privado”, ressalta Gabriela. 

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Cuidado sai caro para a vida financeira e profissional da mulher 

Além do desgaste mental causado pela dupla jornada de trabalho, a dinâmica da economia do cuidado faz com que as mulheres tenham menos tempo e disposição para se dedicar à carreira quando comparadas aos homens. “Como o cuidado costuma ser mal ou não pago, o tempo gasto com ele impossibilita que essas horas sejam usadas para exercer uma atividade remunerada”, explica a socióloga Bruna Pereira. 

É fácil perceber como isso pode afetar a vida profissional feminina. Enquanto estão preocupadas em chegar cedo para buscar o filho na escola, elas acabam abrindo mão de horas extras no escritório ou de participar de um happy hour que renda uma rede de networking, por exemplo. Por outro lado, seus correspondentes homens possuem mais folga mental e física para ascender profissionalmente. 

Esse gap feminino, segundo Bruna, é capaz de contribuir para a ideia de que a contratação de mulheres é menos vantajosa. “Alguns contratantes já consideram o fato dessa profissional não ter disponibilidade para serviços extras e viagens, além de contar com a possibilidade de uma gravidez e licença-maternidade”, afirma. Por décadas, completa a especialista, esses fatores ainda chegaram a contribuir para a disparidade salarial entre os gêneros. 

No caso das donas de casa, ou seja, mulheres fora do mercado convencional de trabalho que se dedicam exclusivamente aos afazeres domésticos, a questão se torna ainda mais expressiva. Ainda hoje, no Brasil, essas pessoas encontram dificuldades para conseguir o direito à aposentadoria, uma vez que o governo não reconhece esse tipo de atividade como contribuição econômica. Já em outros países, como a Argentina, o cuidado com cada filho equivale a três anos de serviço prestado à previdência. 

Um problema de cor e classe

No cenário nacional, a questão do cuidado acaba sendo ainda mais representativa quando relacionada a fatores como raça e classe social. Atualmente, no Brasil, 65% das trabalhadoras domésticas são negras, sendo a maioria delas de baixa renda, segundo dados do Departamento Intersindical de Estudos e Estatísticas (Dieese). 

“A economia do cuidado é historicamente atravessada pela desigualdade”, define Bruna. Durante muitos anos, figuras como as agregadas e as mães pretas, por exemplo, simbolizaram essa terceirização do cuidado em direção ao lado mais frágil da sociedade. É o caso da Tia Nastácia, do “Sítio do Pica-pau Amarelo”, e de Bertoleza, de “O Cortiço”. Responsáveis pelo bem-estar de todo um grupo familiar, essas pessoas, muitas vezes em situação análoga à escrivadão, acabavam se dedicando integralmente em benefício de algo do qual não poderiam usufruir. 

A distinção de classe e cor, no entanto, não descaracteriza a universalidade da questão no que diz respeito à dinâmica da vida feminina.

Enquanto as mulheres negras e pobres costumam desempenhar o trabalho mal remunerado na casa de terceiros, além do próprio domicílio, as mulheres brancas de classe alta são incumbidas de gerenciar o serviço contratado. “Enquanto o trabalho pesado de limpar o chão é destinado às negras, as brancas ficaram encarregadas de escolher a melhor empregada e garantir a execução das tarefas. Nesse caso, o que muda é a realidade de cada uma”, destaca a socióloga. 

Solução demanda políticas públicas e mudança cultural

Em vista de mudanças, as políticas públicas em prol dos direitos das crianças e das mulheres é apontado como um dos caminhos para aliviar esse cenário, conforme explica Gabriela. “As autoridades precisam avaliar questões cruciais para balancear essa dinâmica, o que inclui serviço de creches, fim da disparidade salarial entre homens e mulheres e combate à discriminação”, afirma. 

A economista ainda ressalta que os homens podem contribuir ao compactuar com uma divisão mais justa de tarefas, aliviando parte da carga de trabalho associada às mães, irmãs e companheiras. “A sociedade precisa entender que o cuidado é uma questão central da economia e que essas mulheres merecem qualidade de vida”, completa. O incentivo à licença-paternidade, por exemplo, seria uma das formas de estimular a participação masculina no cuidado das crianças. 

Já no caso do acesso à educação infantil, Bruna chama atenção para as consequências duradouras do problema que acaba impedindo mulheres jovens e de baixa renda de acessar o mercado de trabalho. “Sem trabalhar ou estudar, ainda há quem acredite que essas mães não ‘façam nada’, mesmo que o governo não ofereça estrutura para que elas retomem o lado profissional”, diz. Em 2021, de cada 100 vagas em creches públicas, duas deixaram de existir, resultando em uma evasão escolar na proporção de 650 mil alunos de até cinco anos de idade. 

Dessa forma, a economia do cuidado acaba visibilizando o que as especialistas entendem por alguma das raízes ligadas à desigualdade de gênero. “Todos precisam de cuidado. Então o que se debate é quem faz para quem e a custo do quê”, questiona a socióloga. 

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