Zélia Cardoso de Mello: coragem, machismo e o Plano Collor

Trinta anos após sua passagem pelo Ministério da Fazenda, economista fala com exclusividade sobre machismo, carreira, filhos e desafios do Brasil em 2022
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Zélia Cardoso de Mello foi nomeada ministra da Fazenda com apenas 36 anos (Foto: Gabriela Amerth)

Em março de 1990, Fernando Collor de Mello tomava posse como presidente da República após um longo período de transição e ditadura militar. Na esfera econômica, os desafios eram profundos. Também em março daquele ano, a inflação batia o recorde de 83,95% acumulados em apenas um mês. Diariamente, os preços dos produtos mudavam nas prateleiras dos supermercados e comércios brasileiros.

Para enfrentar o dramático descontrole inflacionário, Collor nomeou para o Ministério da Fazenda (atualmente Ministério da Economia) a jovem economista Zélia Cardoso de Mello, na época com apenas 36 anos.

No dia seguinte à posse, era anunciado o Plano Collor que, entre as principais medidas, congelava a poupança e outros investimentos dos brasileiros acima de 50 mil cruzeiros. Estima-se que o equivalente a US$ 100 bilhões tenham sido retidos por um período de 18 meses. As medidas implementadas naquele período pavimentaram o caminho para a abertura e modernização da economia brasileira nos anos seguintes, apesar da persistência da inflação.

Zélia, antes do momento que marcou a sua vida e de outros 150 milhões de brasileiros, havia se dedicado à carreira acadêmica e ocupado cargos públicos no estado de São Paulo e no Tesouro Nacional. Hoje, ela acredita que ter aceitado o cargo de ministra foi um erro.

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De sua casa em Nova York, para onde se mudou após se casar com o saudoso humorista Chico Anysio e com quem teve dois filhos (Rodrigo e Victória), Zélia conversou com a EUFRASIA sobre passado, maternidade, machismo e carreira. Nos Estados Unidos, ela retomou a carreira após alguns anos dedicados exclusivamente à família. Hoje, aos 68 anos, Zélia se divide entre consultorias e sua maior preocupação: cuidar da saúde. “Eu quero estar viva para ver meus netos”, afirma. Acompanhe, a seguir, a entrevista com a ex-ministra Zélia Cardoso de Mello:

Revista EUFRASIA (RE): Quando você começou a se interessar por economia?

Zélia Cardoso de Mello (ZCM): A família do meu pai era toda de advogados, mas começamos a ter alguns economistas, como o meu primo João Manuel Cardoso de Mello, que foi professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e eu considero a melhor cabeça para pensar economia como um todo. Ele me influenciou muito e, então, eu fui fazer economia.

Mas os meus dois primeiros anos na faculdade foram meio complicados, porque eu passei a não ter tanta certeza de que eu queria aquilo mesmo. Em um certo momento eu achei que queria mudar, que queria fazer fotografia, mas depois eu decidi continuar na economia. Aconteceu ainda outro fato naquela época: um primo-irmão, o José Roberto Arantes de Almeida, morreu assassinado pela ditadura. Aquilo me afetou muito e despertou em mim a vontade de me engajar politicamente, lutar pela democracia e entrar para o serviço público.

RE: Você fez USP? Depois de formada, como as coisas foram acontecendo na sua carreira?

ZCM: Eu considero que fui muito privilegiada. Eu tive muita sorte na minha carreira de estar  no lugar certo e no momento certo. Fui convidada pela professora Alice Canabrava para ser professora assistente na Universidade de São Paulo. Eu resolvi fazer meu mestrado em economia e logo emendei o doutorado. Sempre brinco que eu passei os primeiros 30 anos da minha vida estudando.

Na época, acontecia a transição nos governos estaduais para um governo democrático. Na faculdade de economia, vários professores eram engajados no PMDB [atual MDB], inclusive eu. O Franco Montoro era o candidato e várias pessoas da faculdade se engajaram na campanha dele e, em seguida, no seu governo. Eu fui uma dessas pessoas e trabalhei em uma companhia estadual de casas populares. Ao mesmo tempo, eu continuava dando aulas na faculdade.

Depois veio o Sarney [presidente do Brasil entre 1985-1990] e várias pessoas do meu grupo foram trabalhar no governo federal: o João Sayad, o Dilson Funaro, o meu primo João Manuel, o Luiz Gonzaga Belluzzo, o Andrea Calabi… e eu acabei indo trabalhar na Secretaria do Tesouro com o Calabi, onde era encarregada do controle de estados e municípios. Nessa posição, eu conheci o Fernando Collor. Eu me engajei na campanha dele coordenando a parte de economia e, depois, ele me convidou para ser ministra da pasta.

Economista foi a mentora intelectual do Plano Collor (Foto: Gabriela Amerth)

RE: O fato de você ser uma mulher jovem à frente do cargo em um contexto tão complicado na economia do Brasil foi, de alguma forma, negativo? Como foi enfrentar isso naquela época?

ZCM: Eu tinha 36 anos, era jovem e solteira. Hoje, olhando para trás e tendo observado, lido e aprendido muitas coisas sobre o papel da mulher, em particular na América Latina, eu não tenho dúvidas de que eu não deveria ter aceitado o cargo. Eu deveria ter dito: “Nós temos que fazer uma coisa extremamente difícil e é melhor que um homem faça isso.”

Eu não tenho dúvida de que, muito da reação ao Plano Collor veio pelo fato de eu ser mulher. Eu tinha visto isso acontecer ao longo da minha carreira em muitos momentos. Em ocasiões importantes, como reuniões, muitas vezes as pessoas me ignoravam pelo fato de eu ser mulher. Eu tinha presenciado isso em outros pontos da minha carreira, então, não deveria ser uma surpresa para mim.

Eu sempre digo que todas as coisas ruins do Plano Collor são atribuídas a mim e todas as coisas boas do Plano Collor, como o fim da barreira à importação e a liberalização financeira, são atribuídas ao então presidente.

Algumas pessoas esquecem e outras nunca viveram em um país onde não se tinha cartão de crédito internacional, por exemplo. Quando você viajava há 30 ou 40 anos tinha que comprar traveler checks [cheques de viagem] ou levar um monte de dinheiro na cintura. Fizemos várias inovações que eram bandeiras liberais, como a liberalização financeira, a privatização, até o fim da reserva [de mercado] de informática. Eu passei a usar computador depois que saí do Ministério. Aqui [nos Estados Unidos] já era uma coisa disseminada. No Brasil, não, porque nós tínhamos a reserva de informática e aquela visão de que iríamos desenvolver a indústria brasileira nessa área – e isso não ia acontecer. Não sem o fim da restrição à importação.

Várias coisas do Plano Collor mudaram o rumo da economia brasileira, que passou a ser uma economia moderna. Essas coisas são atribuídas sempre ao presidente, enquanto as partes que são consideradas ruins do Plano, como o confisco, são atribuídas a mim. Mas, na verdade, as duas foram produtos da mesma equipe e do mesmo presidente. Aí você já vê a dicotomia. Você já percebe como o machismo está presente.

Clique aqui para continuar lendo. Este conteúdo faz parte da edição número 1 da revista EUFRASIA, uma publicação da Elas Que Lucrem.

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