De religião à filosofia de vida: como vivem duas modernas bruxas brasileiras

Neste Halloween, a EQL conversou com duas mulheres que se dedicam à bruxaria para entender a realidade por trás de tanto misticismo
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Divulgação
Tânia Gori e Márcia Sanção (da esquerda para a direita), são exemplos de mulheres modernas que seguem a bruxaria

“Se tivéssemos uma máquina do tempo e pudéssemos voltar para a década de 1600 com nossos celulares em mãos, seríamos queimadas.” A afirmação é de Tânia Gori, fundadora da Universidade Holística Casa de Bruxas e da Associação Brasileira de Bruxaria (ABB). “O fato de estarmos em cidades diferentes conversando por meio de um aparelho desconhecido seria pura demonstração de magia para o mundo medieval. Grande parte das mulheres que foram queimadas eram parteiras e curandeiras, que apenas conheciam a natureza e o corpo humano por prática e intuitividade, mas as pessoas não entendiam a origem dessa sabedoria.” 

O desconhecido – principalmente em mãos femininas – era considerado perigoso e tinha apenas um destino: a fogueira. Estima-se que cerca de 60 mil pessoas tenham sido condenadas à morte por bruxaria na Europa entre o século 16 e o ​​final do século 17. Embora homens também tenham sido julgados, a grande maioria das vítimas – 85% ou mais – era de mulheres. Torturadas durante semanas, elas acabavam confessando práticas que não tinham cometido, como beber sangue humano, sacrificar recém-nascidos ou ter relações sexuais com o diabo. Por meio da confissão, a crença de que essas curandeiras eram satanistas ganhava credibilidade, fazendo com que a caça às bruxas explodisse em um círculo vicioso. 

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Foi naquele momento que grande parte dos estereótipos que conhecemos sobre as bruxas surgiu. As poções em grandes caldeirões, por exemplo, eram simplesmente ervas medicinais para curar algum mal-estar, como camomila para acalmar os ânimos ou boldo para náuseas e dores no estômago. Os famosos chapéus pontudos, na moda principalmente no norte da Europa, eram usados por muitas camponesas. Já o nariz pontudo e as verrugas nasceram de um simples julgamento cristão, já que a Igreja considerava a feiura como um manifesto do mal. Sendo assim, as bruxas começaram a ser descritas como seres amedrontadores – estereótipos vivos até os dias atuais por meio de filmes e desenhos animados. 

A bruxaria, no entanto, não é algo do passado. Na conversa de quase uma hora com a Elas Que Lucrem, Tânia não foi entrevistada apenas como uma grande estudiosa do assunto. A paulista – sem caldeirões, chapéus ou nariz pontudo – é uma verdadeira bruxa moderna. “Eu acho que todas as pessoas são bruxas. Todas elas nascem com esse dom. A diferença é que algumas buscam desenvolver e outras não”, diz. No seu caso, a bruxaria sempre esteve presente, embora não fosse nomeada. “Sou neta de ciganas, então não lembro de uma época em que minha vida não estivesse ligada a algum conceito de magia. Minha avó, mesmo sem saber que estava seguindo um estilo de vida ancestral, falava sempre sobre o efeito dos planetas nas nossas vidas. Aos 18 anos, eu percebi que as outras famílias não eram assim e comecei a estudar”, recorda. 

Após muitas leituras e conversas com grupos de bruxaria e esoterismo, ela entendeu que precisava levar esse conhecimento à frente e decidiu abrir a Casa de Bruxas, que possui cursos como leitura de tarô e runas. Com cerca de 1.500 alunos, Tânia, hoje aos 50 anos, leva a sabedoria ancestral como um estilo de vida, e essa é uma informação essencial para entender a vida das bruxas modernas atualmente. “Atendo pessoas que são da umbanda, do budismo e do candomblé. De crença em Ganesha e Iemanjá. Seguimos aqui o que chamamos de bruxaria natural. É uma filosofia, não uma religião.” Para ela e seus alunos, nada de rituais e cultos dogmáticos. “Nosso único objetivo é viver em grande conexão com a natureza, assim como nossas ancestrais. Eu vejo na terra o que vejo em mim. Meu corpo é terra, que é fértil e gera vida. Respiro ar. Sou 70% água. E o fogo é a ação do meu corpo no dia a dia. Bruxaria é isso: leitura e entendimento dos símbolos da natureza.” 

Há alguns quilômetros de Tânia, mas ainda no estado de São Paulo, Márcia Sanção enxerga a bruxaria com outros olhos. Dona do Templo das Bruxas, ela segue os dogmas religiosos da feitiçaria moderna, mais conhecida como wicca – religião pagã fundada pelo antropólogo britânico Gerald Gardner em 1950. Também conhecida como religião da Deusa, a wicca cultua fortemente a figura feminina por se tratar da personificação da mãe natureza, a maior força do universo. Em sua essência, as pessoas pertencem à natureza, não o contrário. Sendo assim, os rituais são realizados com o objetivo de reestabelecer a relação do ser humano com os recursos naturais, e acontecem de acordo com os ciclos da lua ou com as mudanças de estação. 

Também em uma conversa por telefone, com o templo em reforma ao fundo, Márcia explica a importância da wicca para a retomada do sagrado feminino. “Em algumas religiões, a mulher não pode entrar no recinto espiritual quando está menstruada. Na bruxaria, nós buscamos celebrar os mistérios do sangue. Temos um ritual no qual doamos o nosso sangue menstrual para a terra e honramos a Deusa, afinal, esse sangue sagrado tem relação com fertilidade e vida. Nos conectamos com o ventre da terra nesses momentos”, explica ela. “Eu sei que as pessoas ainda têm um grande tabu com a menstruação, mas elas estão deixando de ver a força onipresente da mulher quando pensam dessa forma.” 

Com 57 mulheres seguindo o calendário wicca no Templo das Bruxas – nesse momento ainda de forma online por conta da pandemia -, Márcia ressalta que homens são bem-vindos, embora nenhum esteja na lista de alunos neste momento. Em seu templo, além de rituais e cultos, ela ensina a feitiçaria moderna para que suas alunas possam se tornar sacerdotisas um dia. “Acho que cada vez mais estamos nos tornando um ambiente exclusivamente feminino”, brinca a bruxa. No entanto, embora seja reconhecida como a religião da Deusa, a crença wicca é politeísta e reverencia outras divindades, como o Deus Cornífero, que representa o Sol e os animais e tem um grande significado para uma festividade extremamente conhecida no mundo: o Halloween. 

HALLOWEEN À BRASILEIRA

“Nós seguimos o calendário wicca de acordo com as fases da natureza. No Hemisfério Sul, portanto, a ordem dos nossos rituais é diferente do Hemisfério Norte, já que nossas estações não são equivalentes. O Halloween deve acontecer quando o Deus (sol) estiver enfraquecido. Ou seja, entre o outono e o inverno”, explica Márcia. “Aqui no templo, como seguimos fervorosamente a relação com a natureza, nosso Dia das Bruxas é em maio.” 

No entanto, embora o dia 31 não represente o Halloween para as bruxas brasileiras, elas também têm um motivo para festejar a data. Com coroas de flores no lugar de abóboras, as seguidoras da wicca comemoram o ritual de Beltane no final de outubro, que tem como foco o aquecimento da terra e o início da época de fertilidade, ou seja, a aproximação do verão. 

Além disso, desde 2016, as bruxas paulistas comemoram a existência da Lei 16.309/16, que institui o 31 de outubro como Dia Estadual dos Wiccanianos, Cultivadores do Sagrado Feminino, Pagãos e Praticantes das Artes Mágicas. “Em tempos de festividades presenciais, o ritual de Beltane era seguido por uma festa em comemoração ao nosso dia. Não é Halloween, mas – pelo menos em São Paulo – realmente é Dia das Bruxas”, diz, entre risadas. “Em volta de uma fogueira, honrávamos todas as bruxas que foram queimadas ao longo da história. Este ano, vai ser tudo online, cada uma com seu próprio altar dentro de casa.” 

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Já o próximo Halloween brasileiro, em 1o de maio, deve ser comemorado com um grande encontro presencial após dois anos de isolamento. Embora seja em outra data, a decoração e os costumes honram o típico estereótipo do Dia das Bruxas norte-americano. “Neste dia, honramos os mortos porque acreditamos que o véu que separa o nosso mundo do mundo espiritual está levantado. Estamos mais abertas para o contato. Essa abertura, no entanto, existe tanto para espíritos bons quanto para os maus, e é por isso que decoramos o ambiente com abóboras”, explica. “Com caretas e desenhos, essas abóboras são decoradas e colocadas na frente da porta para afastar os maus espíritos. Sendo assim, em maio o meu templo está sempre cheio de decoração de Halloween. Meus vizinhos pensam que sou uma bruxa doida”, ri.

O PRECONCEITO 

Os vizinhos do templo de Márcia estranham o Halloween fora de época, mas nunca manifestaram desrespeito à sua crença. Talvez graças à proximidade, eles parecem entender que a bruxaria não tem relação alguma com os contos de terror que estamos acostumados a ler. Os feitiços da wicca acontecem junto aos rituais e não visam o mal de outras pessoas. São feitos, em sua grande parte, para conjurar o amor e a alegria. Para impedir o mau uso da magia, a religião possui a “Lei Tríplice”, a crença de que tudo que se deseja para o próximo deverá voltar em triplo para quem o desejou. Sendo assim, apenas sentimentos bons devem ser emanados. 

Como seguidoras de um estilo de vida ou de uma religião, Tânia e Márcia concordam fortemente em um aspecto: é preciso informação para que o preconceito com a bruxaria seja dissipado. “Uma bruxa é, simplesmente, uma mulher sábia”, destaca Márcia. “No período Paleolítico, acreditavam que mulheres eram deusas por conta da capacidade de gerar um ser vivo. Com o desenvolvimento da humanidade, o homem começou a entender como a reprodução funcionava e a valorizar outras questões, como a força física, e por isso as mulheres começaram a ser consideradas um sexo frágil. Antes disso, elas eram sagradas e sempre tiveram um enorme sexto sentido ligado à natureza. Com a bruxaria, estamos apenas retomando esse conhecimento antigo”, completa Tânia. 

Felizes pela oportunidade de explicar a bruxaria em uma entrevista, as duas deixam em aberto um convite para quem se interessar em saber mais sobre o assunto. Seja no templo ou na escola das bruxas, a porta está escancarada para quem quiser conhecer o ambiente livre de julgamentos. “As pessoas precisam se dar a oportunidade de conhecer. E nós estamos dispostas a ajudar nesse processo”, finaliza Tânia.

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