Apesar de trabalhar desde os 13 anos, foi só nos últimos cinco que Larissa Francielly Passos Franco percebeu que estava, finalmente, sendo recompensada pelo seu esforço. Nesse intervalo de tempo, ela deixou de vender refeições em canteiros de obra para se tornar executiva de contas da Brasoftware, gerenciadora de serviços online. “Agora eu durmo tranquila, mesmo quando é semana de entrega. É muito diferente de antes, quando não dava para pagar as contas”, diz.
Natural de Ruy Barbosa, na Bahia, a profissional de 29 anos atribui a mudança à migração de carreira para o setor de tecnologia. “Transformou a minha vida”, destaca. Antes disso, ela conta que chegava a dormir apenas três horas por noite para dar conta do trabalho de vendedora e do curso de ciência da computação.
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“Quando cheguei em São Paulo, eu e minha companheira fazíamos tudo: pegávamos os pães nas padarias, fazíamos os cafés, comprávamos as frutas em feiras nas madrugadas e corríamos risco ao fazer as entregas sozinhas, com tudo escuro ainda, antes do dia clarear. Durante o almoço, ainda ficávamos nas obras tentando vender as marmitas, muitas vezes fiado. Assim, acabamos tendo muito prejuízo. Obras e empresas faliram, pedreiros e construtoras não nos pagaram. As pessoas desapareciam e chegou uma hora que não conseguíamos mais evoluir. Chegamos ao ponto de pagar para trabalhar”, conta.
Hoje, Larissa faz parte da pequena – mas crescente – fatia de mulheres que atuam no mercado de tecnologia. De acordo com dados de um levantamento financiado pelo International Development Research Centre (IDRC), as profissionais do gênero feminino correspondem a apenas 26% do total das equipes de ciências, tecnologia, engenharia e matemática. Apesar disso, alguns números sugerem que uma nova realidade vem se desenhando: as contratações de colaboradoras nessa área chegaram a crescer 196% nos primeiros meses de 2021, segundo um levantamento da recrutadora digital Gupy.
“Cheguei onde nunca tinha imaginado”
O cenário de disparidade de gênero foi algo que a profissional percebeu ainda na graduação. Na sala de aula, ela lembra que tinham apenas três mulheres para dezenas de homens matriculados no curso.
Na época, Larissa conta que escolheu a computação devido à afinidade com programas como Word e Excel, que já eram usados por ela durante reuniões com as construtoras. Somado a isso, ainda existia um sonho de infância de entender melhor o que se passava por trás das telas. “Eu via minha tia usando o computador e tinha muita curiosidade de entender como aquilo realmente funcionava”, descreve.
Apesar de fazer parte da minoria absoluta, a profissional acabou se destacando e recebendo uma oportunidade para estagiar na própria faculdade. Foi o pontapé inicial para que ela deixasse a rotina nas obras e entrasse no mercado de trabalho formal. A partir daí, colaborou com algumas empresas, como a prestadora de serviços Teleperformance, antes de ingressar na Brasoftware, onde atualmente é responsável por atender clientes como a Clear Sale, iFood, Take e Neogrid. “Hoje minha vida é muito melhor, tanto pessoal, quanto financeiramente. Por causa da tecnologia eu tive a chance de dar um salto na minha carreira e chegar onde nunca tinha imaginado”, conclui.
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“Quero ser a liderança feminina que me faltou lá atrás”
No caso de Camila Miguez Albuquerque Silva, de 31 anos, a troca de carreira foi dupla. Atual líder de customer centrics também da Brasoftware, a mineira sabia desde cedo que queria ser engenheira. “Sempre me considerei da área de exatas, além de ser muito inquieta”, conta. No entanto, a vivência do preconceito e do sexismo na faculdade acabaram fazendo com que ela colocasse em dúvida a profissão que havia escolhido.
“Me mudei para Belo Horizonte só para cursar engenharia elétrica. Eu já sabia que era um campo muito masculino, mas passei por matérias em que os professores me diziam que era melhor deixar um homem fazer aquilo, porque eu não ia conseguir. Minha capacidade foi colocada em dúvida unicamente por eu ser mulher, então, quando finalizei o curso, fiquei me questionando muito sobre estar na área certa”, relata.
A frustração profissional fez com que, após a conclusão do curso, Camila decidisse abrir uma loja online de acessórios de prata. “Eu saí da faculdade bem confusa, não sabia o que fazer. Como sempre fui vaidosa, resolvi apostar nessa área”, diz. O negócio deu certo e as vendas iam bem. Pouco tempo depois, a engenheira passou a conciliá-lo com outro trabalho, no bar de um primo. “Eu ia lá para ajudá-lo quando não tinha outro funcionário”, afirma.
Por coincidência, sorte ou ação do destino, foi justamente um dos clientes do estabelecimento que acabou fazendo uma proposta profissional para Camila. “Ele chegou um dia quase na hora de fechar e pediu uma ‘saideira’. Acabou ficando amigo do meu primo e, um dia, contou que havia uma vaga de entrada na empresa onde ele trabalhava. Os dois logo pensaram em mim e me falaram da oportunidade”, lembra. Na época, em 2019, a mineira participou do processo seletivo e acabou conseguindo a vaga de inside sales.
Hoje, Camila avalia que a falta de representatividade feminina foi o que mais pesou na dificuldade que encontrou para se inserir no mercado de tecnologia. “Se eu tivesse me deparado com histórias de outras mulheres nessas posições, talvez, mesmo com a desaprovação dos professores, eu teria me sentido incentivada a continuar.”
Essa lacuna é justamente o que incentiva a mineira a continuar fazendo o melhor que pode no ambiente de trabalho. Segundo ela, seu principal objetivo é se tornar a líder que ela não teve no passado, impactando positivamente outras profissionais. “Quando mulheres chegam ao topo de empresas relevantes no mercado, elas se tornam inspiração para outras. No fim, isso faz com que nós estejamos onde queremos, que é o mais importante.”
Assista a entrevista de Camila na íntegra:
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“Como mulher trans, a tecnologia parecia fora da minha realidade”
Foi por causa de uma reportagem na televisão, em 2019, que Luna Valentina Santiago, de 29 anos, resolveu apostar suas fichas na tecnologia. Segundo ela, a matéria na TV dizia que o Brasil iria precisar de quase 300 mil novos profissionais no setor nos próximos anos. De fato, segundo a Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e de Tecnologias Digitais (Brasscom), até 2024 o gap de colaboradores nessa área será de 260 mil.
Na época, a paranaense estava desempregada e se ocupava vendendo balas e brigadeiros na rua, como ambulante. “Sempre trabalhei com vendas, no varejo. Mas acabei perdendo minha posição pouco antes de começar a pandemia de Covid-19, quando tudo ficou ainda mais difícil”, conta. Assim, a demanda tão grande da área logo se transformou em um atrativo para que ela partisse em busca de oportunidades. “Eu via que tinha muita procura e isso me deu esperança para mudar completamente minha vida”, diz.
Apesar de não ter nenhuma capacitação formal naquele período, Luna afirma que já tinha afinidade com a tecnologia, principalmente com a área de programação. “Na época que todo mundo tinha blog, eu costumava editar os temas, alterar os htmls, esse tipo de coisa”, lembra. Dessa forma, esse foi o setor escolhido por ela para trocar de carreira. Para isso, seu primeiro passo foi buscar um curso gratuito que facilitasse sua entrada no mercado de trabalho.
“Minha primeira opção foi uma capacitação da {reprograma} (iniciativa que ensina programação para mulheres em posição de vulnerabilidade). Só que eu não tinha a máquina adequada para conseguir fazer as atividades, então desisti de me inscrever e continuei como ambulante para juntar dinheiro.” Felizmente, pouco tempo depois, Luna ficou sabendo do projeto Cabeça na Nuvem, iniciativa que doa kits para desenvolvedores iniciantes. “Fui a primeira pessoa a receber a doação deles e, com isso, consegui finalmente começar o curso que tanto queria em 2021”, diz.
A próxima parada da profissional foi em um bootcamp de diversidade promovido pelo banco Itaú. Como mulher trans, Luna conseguiu se inscrever e acabou sendo uma das 40 selecionadas do programa para receber treinamento em tecnologia. “Quando soube, parecia que eu tinha nascido de novo. Eu tinha certeza de que aquilo realmente ia mudar a minha vida. No {reprograma}, eu era a única mulher trans da minha turma. É algo muito fora da nossa realidade. Quero que todas as pessoas trans saibam que a tecnologia é um caminho. Foi assim comigo.”
Antes de ingressar na instituição financeira, Luna confessa que chegou a sentir receio em relação a discriminação e transfobia. Apesar de ter certeza que conseguiria aprender a parte técnica, explica, o medo de rejeição por parte da equipe ainda estava presente. Por causa disso, e também devido à convivência com outras pessoas trans que participaram do bootcamp, Luna teve a ideia de criar o Transdevs, projeto que tem o objetivo de apoiar a entrada de pessoas transgêneras no mundo da tecnologia.
“Eu não tinha visão de futuro antes de mudar de carreira, não conseguia imaginar como estaria a Luna daqui a cinco anos”, diz a atual analista de TI na companhia. Bem diferente dessa realidade, agora ela já sabe que, além de crescer no banco, quer ocupar um cargo de liderança nos próximos anos. “Meu objetivo é ser a primeira líder trans do Itaú e, com isso, mostrar que podemos chegar aonde queremos. Quero ser essa pessoa para as profissionais que virão depois de mim.”
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