“Eu usava o absorvente por muitas horas. Me sentia suja e envergonhada”, diz jovem vítima da pobreza menstrual

Dados de uma pesquisa da Espro feita em parceria com a Inciclo revelam que uma em cada três brasileiras de 14 a 24 anos já deixou de comprar o produto por falta de dinheiro
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Sora Shimazaki/Pexels
Por conta da pobreza menstrual, 42% das jovens brasileiras que menstruam utilizam o absorvente por mais tempo do que o indicado (Sora Shimazaki/Pexels)

Nascida e criada em uma comunidade de Diadema, em São Paulo, Joyce Cristina Nogueira, de 21 anos, sempre viveu em uma casa cheia. Na primeira infância, morava com a mãe e três irmãos, até a família crescer novamente com a adoção de três crianças que viviam em condições precárias na comunidade. “Elas viviam numa situação muito difícil, então minha mãe decidiu ajudar. Ela era a nossa única fonte de renda, precisava ficar o dia inteiro trabalhando como diarista. Não era fácil colocar comida na mesa”, conta a jovem. 

Como a mãe não ficava muito tempo em casa, Joyce não se sentia confortável para falar sobre determinados assuntos com a família. O tema menstruação, por exemplo, só chegou ao seu conhecimento por conta de algumas amigas, que já estavam passando pela transformação. Aos 14 anos, quando chegou sua vez, ela não sabia muito bem o que fazer. “Contei para uma amiga e ela me deu alguns absorventes. Para a minha mãe, eu só fui contar no segundo mês. Contei chorando, com muita culpa e medo da reação dela”, recorda.

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A mãe de Joyce até riu da situação, mas acabou contando a novidade para outras pessoas, o que a deixou ainda mais constrangida. “Não foi uma reação ruim, mas me deixou incomodada.” Naquele momento, a jovem se fechou ainda mais no que dizia respeito ao assunto. Também não conversava com suas irmãs e lidava com as necessidades da forma que conseguia. “Eu já tinha visto amigas trocando absorvente por pano ou passando mais horas do que o recomendado com o produto. Achava que era normal, então também fazia assim para economizar e não precisar ficar comprando. Às vezes, quando realmente não tinha, eu até deixava de sair de casa.” 

Por utilizar o absorvente de forma errada, Joyce sentia diversos incômodos durante a menstruação. “Como prolongava o uso, acabava me sentindo suja. Cheguei até a ter problemas com candidíase, mas não relacionava isso com a maneira de usar o absorvente”, revela. Foi apenas quando começou a participar de algumas oficinas de um centro recreativo de sua comunidade que sua relação com o período menstrual mudou. Em aulas e cursos sobre educação sexual, ela entendeu a importância de utilizar de forma correta o item de higiene. Sentindo-se ouvida e acolhida, começou a conversar sobre o assunto com a coordenadora do centro, que a ajudou financeira e psicologicamente. 

“Esse lugar me salvou. Quando acabava o absorvente, eu falava com a coordenadora do curso e ela comprava para mim. Além disso, comecei a trabalhar e ganhar meu dinheirinho. Embora fosse pouco, eu já sabia que precisava guardar para comprar absorvente todo mês.” Hoje, Joyce sabe que viveu uma situação de pobreza menstrual – termo dado à falta de acesso a produtos para manter uma boa higiene no período da menstruação. E, infelizmente, ela não é raridade quando se trata deste assunto.

Jovem aprendiz pelo Espro Educa, plataforma que busca incluir adolescentes e jovens no mercado de trabalho, Joyce foi apenas uma entre as 3.735 meninas que responderam à recente pesquisa sobre pobreza menstrual feita em parceria com a Inciclo. Mais do que isso, ela faz parte de algumas estatísticas reveladoras descobertas no estudo: uma em cada três brasileiras de 14 a 24 anos já deixou de comprar absorventes por falta de dinheiro. Ainda por questões financeiras, 42% das jovens brasileiras que menstruam utilizam o produto por mais tempo do que o indicado. O perfil de Joyce não é uma exceção. 

MUITAS JOYCES PELO BRASIL 

“Quando fizemos a pesquisa, percebemos que os resultados demandavam uma ação efetiva da nossa parte. Não podíamos apenas divulgar os dados sem fazer nada”, diz Alessandro Saade, porta-voz da Espro, que logo buscou uma parceria para resolver o problema das meninas que participaram da iniciativa. Em contato com Mariana Betioli, CEO da Inciclo, primeira marca nacional de coletores menstruais, eles decidiram doar o produto para todas as entrevistadas, além de oferecer uma série de vídeos e conteúdos sobre educação sexual. “Não basta apenas entregar os copinhos”, diz ele. 

“Muitas meninas usam absorvente por mais tempo do que o recomendado ou apelam para outros produtos substitutos para a menstruação, como jornal, miolo de pão, papel higiênico e até folha seca. A criatividade vai longe quando essas pessoas não têm acesso aos itens adequados”, explica Mariana. “O que essas mulheres não sabem é que isso compromete a saúde. A mucosa da nossa vagina absorve diversas substâncias e usar materiais impróprios ou produtos por mais tempo pode desequilibrar a flora vaginal e causar infecções. A candidíase, por exemplo, acontece assim.” 

Além do impacto para a saúde íntima da mulher, essas situações geram incômodos, como dores e coceiras, o que extingue a dignidade menstrual. “Elas não conseguem fazer as coisas básicas do dia a dia por conta da menstruação. Como vamos tratar o assunto de forma leve se ele carrega desconforto?”, questiona a especialista em saúde menstrual. “O sangue em contato com o absorvente gera odor, principalmente quando a troca é menos frequente. E essas meninas acham que o cheiro é culpa delas, o que não é verdade. Quando o sangue está no absorvente, ele já está em decomposição, por isso tem um aspecto diferente. Quando sai do nosso corpo, não tem cheiro algum. É simplesmente sangue”, explica. 

Sem acesso à educação sexual, muitas mulheres passam anos cultivando uma corrente negativa sobre a menstruação. “O pensamento recorrente é: se algo que representa tantos sentimentos ruins sai de mim, o problema sou eu.” Para Mariana, o coletor é capaz de apresentar algumas soluções para esse público. Além de não conter nenhum produto químico em sua composição – diferente do absorvente tradicional, que gera alergias em algumas mulheres -, o coletor é reutilizável e dura três anos, com impacto positivo tanto para o meio ambiente quanto para o aspecto social e financeiro.

“A durabilidade do produto é uma boa solução para diversas mulheres, inclusive quando se trata de políticas públicas”, diz a especialista. Uma ressalva importante, no entanto, é a necessidade da educação sexual para que essas soluções sejam absorvidas pela sociedade. “No caso da parceria com a Espro, por exemplo, nós não doamos produtos: entregamos conhecimento. Muitas mulheres não conhecem o próprio corpo e não sabem por quais buraquinhos o xixi e o sangue saem. Elas precisam saber sobre isso antes de ganharem um coletor. É esse conhecimento que vai quebrar o tabu e fazer com que elas lidem com a menstruação de uma forma mais leve.” 

A problemática da pobreza menstrual já está mais do que clara quando se observa os dados sobre o assunto. A indisponibilidade de um absorvente já fez com que 32% das entrevistadas deixassem de ir a alguma festa ou encontro, 20% perdessem um dia de aula e 11% faltassem ao trabalho. Além disso, os índices variam significativamente de acordo com renda e raça. Enquanto o percentual de meninas que afirmaram já ter recorrido a alternativas  como papel higiênico, panos/roupas velhas ou algodão para o cuidado íntimo é de 32% entre as que se declaram brancas, ele sobe para 42% entre as autodeclaradas negras (pretas e pardas).

Outro dado importante colhido pelo levantamento foi o de que 54% das jovens afirmaram não ter recebido orientações antes da primeira menstruação – sendo que 10% delas disseram não ter sido instruídas nem depois do primeiro ciclo. Das jovens que receberam orientação em algum momento, 93% a tiveram das mães e 33% apontaram que o papel coube a outros parentes próximos do gênero feminino. Apenas 4% apontaram o pai como orientador. A fonte número um de informações sobre o tema, no entanto, é a internet (91%), com destaque para as redes sociais (47% de menções).

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“Para combater a pobreza menstrual é preciso desmistificar a menstruação, que ainda é vista como tabu em muitas casas”, ressalta Mariana, que enxerga urgência na necessidade de uma política pública que englobe o país inteiro – com acesso à informação e produtos básicos. 

ENXERGAR A MENSTRUAÇÃO 

“Existe um problema que precisa ser ouvido. O sistema público oferece camisinha para as pessoas. Isso é excelente, mas por que o sexo é reconhecido e a menstruação não?”, questiona Mariana. “Estamos ignorando o fato de que as mulheres sangram quase uma semana por mês. Isso fortalece o tabu e faz com que muitas meninas sofram a pobreza menstrual caladas, sem falar com ninguém.” 

No Dia Internacional da Mulher, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto que prevê a distribuição de absorventes a mulheres e meninas de baixa renda – cujo texto é praticamente uma cópia do projeto vetado por ele em outubro passado. Na última quinta-feira (10), o Congresso Nacional derrubou, em sessão conjunta, o antigo veto do presidente, liberando a criação de uma política de distribuição gratuita de absorventes higiênicos a estudantes dos ensinos fundamental e médio, mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias.

A proposta, escrita pelas deputadas Marília Arraes (PT-PE) e Tabata Amaral (PDT-SP), que visa combater a pobreza menstrual, agora vai virar lei. É um grande passo para uma situação que atinge o país inteiro – e não apenas o Brasil profundo. Para as próximas “Joyces” , espera-se que a situação esteja – finalmente – resolvida.

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