Caso Déia Freitas: por que restringir vagas para negros não é discriminação

Fundadora do podcast “Não Inviabilize” foi atacada no início da semana ao compartilhar recrutamento exclusivo para minorias étnicas e raciais
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Déia comanda o podcast “Não Inviabilize” (Foto: Reprodução/Instagram)

No início da semana, a criadora de conteúdo Déia Freitas publicou nas suas redes sociais uma vaga temporária para assistente de roteiro do seu podcast, o “Não Inviabilize”. O que parecia ser um “trabalho dos sonhos”, com salário acima da média e flexibilidade de horário, logo virou espaço para discussão e ódio na internet. O motivo foi um dos pré-requisitos para a contratação, que exige  que as candidatas sejam mulheres “pretas, pardas ou indígenas”.

Na descrição, a podcaster afirma que também são aceitas portadoras de deficiência física, além de destacar que o estado civil e a sexualidade das candidatas “não é importante para a vaga”.  A oportunidade inclui ainda um salário de  R$ 5 mil mensais e bônus de R$ 2 mil após o fim do contrato de quatro meses, além de home office e jornada flexível.

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Logo após a publicação, a vaga passou a ser alvo de acusações de discriminação e “racismo inverso” pelos próprios seguidores de Déia.  As ofensas foram seguidas de ataques virtuais, que acabaram bloqueando o e-mail destinado ao recebimento dos currículos.

Em sua conta pessoal do Twitter, a podcaster explicou que estava recebendo ameaças de processo devido aos critérios de seleção “Tem uns caras falando que vão me processar porque estou discriminando gente branca e homens”, disse. “Estão printando o texto da vaga junto com uma lei e meu e-mail do Gmail para a vaga está suspenso”, completou.

A polêmica se estendeu até para o salário, já que a quantia de R$ 22 mil pelos quatro meses de trabalho foi considerada “alta demais” para as funções anunciadas – que incluem contato com ouvintes via WhatsApp e sínteses de histórias recebidas por e-mail. Alguns usuários chegaram a sugerir que o caso estava ligado a lavagem de dinheiro ou que o benefício não seria devidamente pago.  

Em seu perfil, Déia se defendeu das acusações dizendo que a quantia era proporcional à sua  evolução profissional dos últimos anos. “Eu saí de uma pessoa que precisou receber auxílio emergencial no começo da pandemia para alguém que tem uma equipe grande, paga OK e pode contratar! Tudo isso num ofício que existiu a vida toda: contação de histórias”, disse. 

No início da manhã de ontem (12), a podcaster publicou em suas redes que o e-mail destinado aos currículos tinha sido reativado. Segundo ela, o processo seletivo continua até o dia 16, sem nenhuma alteração em relação à publicação original. 

Medidas afirmativas não podem ser consideradas discriminatórias

A lei usada como argumento para criticar a medida é a nº 9.029, que diz que “é proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros”. De acordo com a advogada trabalhista Maria Lucia Benhame, embora o artigo seja claro sobre a proibição, é preciso levar em consideração a intenção do empregador ao delimitar o perfil dos recrutados. 

No caso do podcast, por exemplo, o recrutamento exclusivo para mulheres negras, pardas e indígenas acaba se configurando como medida afirmativa, ou seja, ação que tem como objetivo  combater um quadro de desigualdade. “Em grupos como a população negra,  que por motivos históricos acabam tendo maior dificuldade de entrar no mercado de trabalho, escolhas como essa acabam tendo um  papel social importante”, explica. 

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A advogada Ana Paula Bueno destaca que, em um primeiro momento, a interpretação de discrimação trabalhista até é possível, mas quando se considera a realidade brasileira, acaba ficando claro que a medida passa longe de um suposto privilégio. “Usar a igualdade de tratamento para reduzir a desigualdade nem sempre dá certo”, afirma. “Muitas vezes, para diminuir esse lapso é preciso justamente dar um tratamento diferente para certas questões”, conclui. 

Assim, explica ela, a restrição se justificaria com base no próprio texto da lei, que também garante a igualdade entre todos os cidadãos. “Apesar de parecer contrária ao que está escrito na Constituição,  o objetivo da medida afirmativa proposta por Déia é o mesmo da lei, então não existe conflito de interesse.” 

Tratamento “diferenciado” é medida temporária 

Em setembro de 2020, um caso semelhante aconteceu com um dos processos seletivos do Magazine Luiza. Na época, a varejista anunciou que apenas profissionais negros e pardos poderiam ingressar no recrutamento de trainee, ação que teria como objetivo aumentar a diversidade étnica nos cargos de liderança. O caso chegou a ir à Justiça, mas pouco tempo depois o Ministério Público do Trabalho afirmou que a ação não configurava violação trabalhista, abrindo as portas para que a varejista repetisse o programa em 2021. No mesmo período, a farmacêutica Bayer abriu um processo seletivo semelhante, voltado à contratação de profissionais negros para o programa de mentorias e também para a nova turma de trainees.  

Para Maira Reis, CEO da camaleao, recrutadora especializada em diversidade, medidas como essa são bem-vindas para amparar desigualdades que se arrastam há séculos. “Mesmo sendo maioria no Brasil, a população negra se mantém marginalizada. Existe sim uma maior dificuldade nesse grupo em passar por processos seletivos e evoluir na escala corporativa”, afirma. A opinião da especialista é confirmada pelos últimos dados publicados pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese): 3 milhões de profissionais negros seguem sem trabalho após a pandemia, contra 1 milhão de brancos. 

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Dessa forma, os verdadeiros recrutamentos discriminatórios não são aqueles voltados para minorias, explica, mas sim os que usam critérios sem relevância real na escolha de candidatos. Entre os tipos mais comuns estão a exclusão de gestantes, pessoas com união estável, moradores de regiões descentralizadas e até profissionais de faixas etárias mais elevadas. “Se determinada empresa deixa de contratar um candidato com um bom perfil só porque ele mora longe e gastará mais com vale-transporte, por exemplo, ela estará beneficiando apenas a ela mesma, o que configuraria um caso de discriminação”, sintetiza. 

A especialista ainda reforça a necessidade de adaptação dos processos seletivos para receber grupos marginalizados, assim como uma mudança na cultura interna da empresa e da equipe que irá trabalhar com aquele profissional, garantindo uma convivência respeitosa e tolerante. 

Tratamento diferenciado? “Pode ser”, afirma Maira. Mas diferente do privilégio, essas ações possuem um caráter temporário, onde a duração é inversamente proporcional à sua eficiência na sociedade. “No curto período de tempo essa diferenciação pode assustar, mas no longo prazo faz muito sentido facilitar circunstâncias que eram inacessíveis em determinado momento.”  Em tese, conclui a CEO, essa atenção extra é uma ferramenta para que no futuro – talvez – medidas afirmativas não sejam mais necessárias – e muito menos motivo de discussão no Twitter. 

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