Mulheres como armas de guerra: como a violência sexual é usada para humilhar inimigos e conquistar territórios

Áudios vazados do deputado estadual Arthur do Val sobre ucranianas reabre feridas de uma prática que nunca foi, de fato, eliminada
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Mulheres como armas de guerra: como a violência sexual é usada para humilhar inimigos e conquistar territórios
(Foto: Viacheslav Ratynski/Reuters)

Ainda que, atualmente, sejam reconhecidas como crimes de genocídio e crimes contra a humanidade, as violências contra a mulher continuam estampando os conflitos armados ao redor do mundo. Na última sexta-feira (4), áudios vazados do deputado estadual por São Paulo Arthur do Val (Podemos), conhecido como Mamãe Falei, de mensagens enviadas aos integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL), revelaram falas em que ele classifica as mulheres ucranianas de “fáceis, porque são pobres”. A declaração, além de sexista e misógina, remete a essa prática intrínseca em conflitos armados, onde a humilhação dos povos invadidos é feita, também, por meio do assédio moral e sexual contra mulheres. 

Das mulheres de conforto asiáticas – escravizadas sexualmente e forçadas a se prostituir em bordéis militares japoneses durante a Segunda Guerra Mundial – ao comentário do deputado sobre as ucranianas, o estupro e os assédios contra mulheres e crianças são uma arma antiga nas guerras que marcaram a história do mundo. Não importa para qual ponto da linha do tempo você olhe, os estupros em conflitos armados estão lá. Seja na idade média ou na idade moderna, nas guerras mundiais ou em conflitos territoriais na África e Ásia, mulheres foram – e ainda são – sistematicamente violadas. 

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Uma realidade enraizada

Essa é uma prática tão enraizada que está presente, inclusive, em mitologias e escritos de religiões. Na Guerra de Troia, por exemplo, soldados gregos dividiram as mulheres entre si após a invasão da cidade. Por outro lado, a Bíblia menciona estupros durante guerras em diversas passagens, como em Isaías, 13:16: “E suas crianças serão despedaçadas perante os seus olhos; as suas casas serão saqueadas, e as suas mulheres violadas”.

“Com o tempo, o estupro passou a ser ainda mais natural no âmbito dos conflitos armados, sendo utilizado como arma de guerra com o intuito de desestabilizar o inimigo, seja com ameaças, humilhações, torturas e até mesmo como limpeza étnica. Mas, além disso, muitas mulheres também eram vistas como escravas sexuais, servindo como prêmios para os soldados”, explica Bárbara de Abreu Oliveira, mestra em direitos humanos pela Universidade Federal de Pernambuco.

Por isso, essa é uma violência que vai além da questão do gênero, apesar de se manifestar, em sua maioria, entre homens que oprimem mulheres. “É uma estratégia de dominar, explorar e aniquilar. Em conflitos armados, corpos de mulheres acabam se tornando o verdadeiro cenário da guerra”, explica a especialista.

Já em conflitos étnico-raciais, a estratégia é utilizada para limpeza étnica: “Além de serem expostas, humilhadas e algumas estupradas até a morte, muitas mulheres engravidam do exército inimigo e correm o risco de não serem aceitas por seus familiares, afinal, o grande objetivo é controlar a descendência dos povos”, diz Bárbara. 

Veja, a seguir, cinco momentos da história que foram – ou são – marcados pelo estrupo como arma e tática de guerra:

Primeira e Segunda Guerras Mundiais (1914-1918 e 1939-1945)

Antecipada pelo conflito nos Bálcãs e o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Fernando, a Primeira Guerra Mundial teve o número de estupros reduzidos em comparação a confrontos anteriores. Isso porque as nações cristãs tentaram manter regras e comportamentos tradicionais durante a operação,  então decidiram “abastecer” os soldados com prostitutas. Mas, em 1918, os estupros começaram a aumentar, período em que tropas francesas com muitos soldados e mercenários de colônias fora da Europa ocuparam regiões da Alemanha.

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Ainda assim, o Império Otomano (Turquia) aproveitou o clima de guerra que se alastrava pela Europa para praticar um genocídio contra povos armênios, que não tinham independência, mas viviam em território otomano. Mulheres e meninas foram separadas dos homens e estupradas em massa – mais de 90% delas foram mortas depois. As exceções foram mulheres jovens e bonitas, levadas e escravizadas pelos turcos.

Durante a Segunda Guerra Mundial, que se iniciou em 1939 com a invasão alemã da Polônia, os estupros voltaram a ser uma arma sistemática para humilhar e aterrorizar as populações invadidas. O caso mais emblemático, cometido por tropas do Império Japonês, é o das mulheres de conforto. Mais de 20 mil meninas e mulheres de países asiáticos dominados pelo Império do Japão foram escravizadas sexualmente e forçadas a se prostituir em bordéis militares. 

Mas esse não foi o único caso da violência sexual como arma de guerra durante os conflitos que ocorreram entre 1939 e 1945. Os generais russos, após conquistarem a Alemanha no fim da guerra, liberaram temporariamente os estupros. Além disso, o Exército Vermelho também cometeu estupros em massa de meninas e mulheres alemãs durante a ocupação. Mais de 240 mil morreram no período, que perdurou até 1948, quando a Alemanha recuperou sua estrutura política.

Guerra do Kosovo (1999)

“Estudiosos afirmam que, na antiga Iugoslávia, conflitos vinham ocorrendo desde 1941, com a invasão nazista. Era um território com diversas etnias e, aos poucos, as ações foram acirrando ainda mais a disputa entre os povos. Os conflitos com os sérvios, que começaram nos anos 1990, tinham como objetivo promover uma limpeza étnica, e evidenciaram inúmeros casos de violações contra o Direito Humanitário, bem como a violação contra o Direito das Mulheres”, explica a especialista.

Ao longo da década de 1990, os confrontos na região se intensificaram, afetando milhares de pessoas de diferentes etnias. Em 1999, após o bombardeamento da então Iugoslávia (que integrava o território de países como Sérvia) pela Organização do Tratado do Atlântico Norte(OTAN), a guerra do Kosovo teve um novo desdobramento. Motivados por questões étnicas e políticas, militares sérvios prometeram vingança aos moradores da província separatista kosovar. Foram contabilizadas, aproximadamente, 13 mil mortes e mais de 1.600 desaparecidos. 

A tortura em forma de estupro foi uma perigosa arma no conflito, utilizada por militares sérvios contra a população, principalmente as mulheres, de Kosovo. Estima-se que em torno de 20 mil pessoas foram vitimadas. Como uma forma de mostrar poder, essa violência era, inclusive, praticada na frente de familiares para causar maior impacto. 

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A falta de punição contra os estupros cometidos em guerras é visível, além da descrença nos tribunais quanto aos relatos e provas, frequentemente desconsiderados.

Genocídio de Ruanda (1994)

Há mais de 20 anos, um massacre se alastrou por 100 dias em Ruanda, país da África Central. Na época, as Nações Unidas estimam que entre 250 mil e 500 mil mulheres foram violentadas por milícias e/ou grupos hutus armados.

“O conflito entre as três principais etnias – hutus, tutsis e twa – resultou na morte de mais de 800 mil pessoas, além do grande número de refugiados”, explica a especialista. Apesar de o estupro em guerras não estar estritamente relacionado a iniciativas de colonização, o caso de Ruanda seguiu essa linha. “O processo de independência do país depois do colonialismo belgo causou muitos assassinatos em massa e, seguindo a mesma prática que o conflito belga, o corpo da mulher foi explorado como campo de guerra em Ruanda.”

Boko Haram (de 2014 até os dias atuais)

Fundado em 2002, o grupo extremista Boko Haram, que busca a imposição da Xaria – a lei islâmica – no norte da Nigéria, usa como estratégia a invasão de escolas de meninas, sua captura e estupro por guerrilheiros islamitas. Violentadas até aceitarem virar muçulmanas e se casarem com um dos seus torturadores, as vítimas têm, em sua maioria, de oito a 35 anos. 

Desde 2014, a guerra entre Boko Haram e o exército da Nigéria teve como pano de fundo os estupros cometidos contra mulheres, tanto por parte do grupo terrorista como por militares que, em tese, deveriam proteger sua população. Há relatos de meninas que fugiram de seus sequestradores, chegaram a campos destinados às vítimas da guerra e foram, então, violadas por oficiais nigerianos. 

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A ONU já denunciou o estupro como tática de guerra do Boko Haram, uma vez que foram atos “totalmente vinculados a objetivos estratégicos, à ideologia e ao financiamento de grupos extremistas”.

Guerra do Tigré (de 2020 até os dias atuais)

O estupro e a violência contra centenas de mulheres e crianças por tropas da Etiópia e da Eritreia durante os conflitos ocorridos no Tigré, região etíope batizada em referência ao grupo étnico que compõe a maior parte de sua população, os tigrés, é denunciado em documento da Anistia Internacional. Na fronteira com a Eritreia, o território tigré vem sendo alvo de conflitos armados desde 2020. A guerra ainda em andamento é repleta de denúncias de escravidão sexual e casamentos forçados.

As mulheres são, geralmente, abordadas em casa ou nas ruas, raptadas e presas por semanas. As vítimas são constantemente violentadas na frente de familiares ou de outras pessoas, com participação de dois ou mais homens – o que é caracterizado como estupro coletivo.

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