Japa não! Ana Hikari explica por que o termo a incomoda e conta como foi seu processo de racialização

Em “Malhação: Viva a Diferença”, atriz se tornou a primeira protagonista amarela de uma novela da Rede Globo
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Ana Hikari
Ana Hikari é atriz, influencer e ativista (Foto: Divulgação)

Hikari (光): expressão nipônica que significa luz ou brilho. Ou o segundo nome de Ana Hikari Takenaka Rosa, atriz, ativista e influencer digital. Mas, por muito tempo, ela foi simplesmente Ana Rosa, como a estação de metrô da capital paulista, localizada no centro da Vila Mariana, onde a artista nasceu. 

“Acho que essa é uma história que muitos descendentes de japoneses vivem. A gente se afasta da cultura e vai para o caminho oposto com o intuito de pertencer a esses espaços, que são muito mais brancos. Isso é muito maluco. Afinal, como a gente pode negar a nossa própria aparência?”, questiona. “É por isso que eu assinava Ana Rosa. Eu me recusava a utilizar meu sobrenome japonês, ou meu segundo nome.”

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Mas os anos se passaram e hoje ela é Ana Hikari, a primeira atriz amarela a protagonizar uma novela da Rede Globo. “Nunca tinha imaginado que poderia estar nesse lugar, principalmente porque passei muito tempo assistindo televisão e não via pessoas como eu ocupando esses espaços”, conta. 

Foi em “Malhação: Viva a Diferença”, vencedora do Emmy Internacional de Melhor Série, ao dar vida a personagem Tina, que Ana recebeu essa honra, como ela gosta de chamar. “Saber que estou lá pela primeira vez como protagonista asiática, representando um monte de gente que teve essa expectativa, é um presente, mas também uma grande responsabilidade.”

Racialização

Ana Hikari é brasileira de origem japonesa, por parte de mãe, e indígena, por parte de pai (Foto: Divulgação)

Brasileira, filha de mãe com descendência japonesa e pai negro com descendência indígena, Ana teve a sorte de conviver com todos os tipos de arte na infância. A mãe levava a pequena para o teatro todos os finais de semana, enquanto o pai, que trabalhava com cinema, a colocava em um canguru para bebês e a carregava para os festivais.

Bastou Ana começar a falar para entrar em um grupo de canto, aos dois anos. Uma década depois, decidiu desbravar as aventuras do teatro. Desde então, não largou mais os palcos e a adrenalina de dar vida a outro alguém. Por isso, quando chegou à adolescência e àquele momento conturbado de escolher os rumos da vida, não pensou muito: tinha que ser artes cênicas. “Foi um ambiente no qual eu convivi desde muito pequena. Então foi muito natural”, conta. 

Ana entrou, então, na Universidade de São Paulo. Foi lá, na Escola de Comunicação e Artes (ECA), que ela se deparou não apenas com o universo artístico, mas com pautas sociais que abriram seus olhos e a fizeram entender um pouco mais sobre suas dores. Foi graças ao Coletivo Feminista da ECA que Ana teve contato com o feminismo, principalmente com o feminismo negro. “A partir desses textos, me identifiquei como uma pessoa não-branca. Para mim, foi essencial estar naquele ambiente universitário, em contato com debates de questões sociais, porque foi onde eu me encontrei. Até então, eu não sabia muito bem quem eu era”, diz.

Ana Hikari
Ana, por muito tempo, não soube se identificar racialmente (Foto: Divulgação)

Entre a  infância e a adolescência, a atriz passou pela racialização – processo de atribuir identidades raciais ou étnicas a um relacionamento, prática social ou grupo que ainda não se identificou como tal -, mas não sabia dar nome às coisas que vivia. “Eu demorei muito para me entender. Até 2012 ou 2013, eu não sabia me identificar racialmente. Então, acho que eu pensava que era branca. Eu não sabia de onde vinha. Também não sabia que outras pessoas passavam pela mesma coisa que eu”, relembra. 

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Para ela, a falta de identificação faz parte do processo de racialização. “Os personagens que eu via na televisão e na mídia sempre estavam completamente estigmatizados e estereotipados. Por isso, não me representavam”, conta. Segundo ela, ao assistir um filme ou um programa e ver sempre o grupo étnico com o qual se identifica retratado naquele estereótipo, é natural absorver que não se pode ser mais do que aquilo. “É quase como se você não pudesse ter autonomia sobre a sua identidade e, ao mesmo tempo, ouvisse o oposto das outras pessoas, sempre ditando o que você deveria ser”, reflete.

Atriz e ponto

Tina e Anderson
Ana Hikari como Tina e e Juan Paiva como Anderson em “As Five” (Foto: Fábio Rocha/Globo)

Inserida em um contexto de falta de representatividade, de preconceitos em um mercado de trabalho ainda difícil de adentrar e de estigmas que a reduzem, Ana decidiu, de certa forma, rebelar-se. “Em vez de me fechar nessa caixinha, eu quis desafiar e fui para o lado oposto. Eu fazia o extremo de tudo aquilo que me impunham em relação ao estereótipo de pessoas asiáticas”, relembra. 

O que não quer dizer que foi fácil. Apenas a carreira que escolheu para a vida já é, por si só, um desafio, afinal, segundo Ana, ser artista no Brasil é viver sem muita perspectiva. “Já estamos em um país que não incentiva a arte e que não é muito receptivo aos artistas. Mas, além disso, as pessoas têm uma falsa impressão de que a arte não é importante na vida delas, e acho que esse pensamento acaba refletindo nas políticas públicas, que nunca favoreceram os profissionais do setor”, desabafa.

Ana começou na carreira ainda enquanto estudava, fazendo estágio na área e comandando duas companhias de teatro. Mas quem acha que ela tinha alguma renda está enganado. No começo, ela pagava para poder trabalhar, afinal, levantar uma peça de teatro pressupõe muitos gastos. “Eu tinha que vender brigadeiro, roupa e trabalhar em loja, para poder pagar cenário, figurino e até transporte. Isso porque a gente queria apresentar peças para pessoas que, muito provavelmente, nunca tinham tido contato com o teatro”, diz.

Mas para além disso, a dificuldade no mundo artístico também tinha – e tem – um recorte de raça. Para Ana ser chamada para um teste, precisa estar escrito com todas as letras: “Atriz asiática, 25 anos”. Quase como aguardar uma permissão para atuar. “Eu sempre falo que meu maior desejo é ser vista apenas como atriz. É claro que com isso não quero dizer que vou esconder minha identidade, mas sim que gostaria de ser enxergada com a mesma dignidade que uma atriz branca. Quero ser chamada para os mesmos papéis que ela e ter as mesmas oportunidades, porque eu sou isso: atriz.”

Ana, Tina e Vandinha

As Five
Ana Hikari e o elenco de “As Five”: Gabriela Medvedovski, Heslaine Vieira, Manoela Aliperti, e Daphne Bozaski (Foto: Estevam Avellar)

De muitas formas, sua estreia na televisão veio de forma especial. Sempre tão atenta e preocupada com os estigmas que rondam personagens asiáticos nas produções audiovisuais, Ana recebeu o presente e o desafio de dar vida à Tina, em “Malhação”. “Foi muito importante mostrar para as pessoas que podemos nos enxergar fora dos estereótipos. Ainda mais sendo uma protagonista, com uma história de tantas nuances. Para mim, a Tina é um desafio, desde a época da ‘Malhação’ até ‘As Five’”, conta. 

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No final de 2020, o spin-off de “Malhação: Viva a Diferença”, que conta a história de cinco amigas adolescentes, cada uma com uma realidade diferente, foi lançado no Globoplay. “As Five” traz as mesmas cinco amigas da série exibida na TV aberta agora mais velhas, com um intervalo de três anos sem contato. “Ela [Tina] trouxe um peso dramático à obra que foi muito gostoso de visitar. E é uma delícia, porque quando temos esses desafios de atuações complexas, nos jogamos muito. Foi o que aconteceu comigo. Por isso sou muito apaixonada por essa personagem.”

Mas, apesar de sua estreia nas telas passar por um enredo que celebra a diversidade, Ana entende que a produção audiovisual brasileira ainda precisa “comer muito arroz e feijão” para evoluir nesse sentido. “O que a gente vê nas produções internacionais é um elenco mais diverso, com representatividade. E, para além disso, com personagens que não estão ali apenas por serem racializados, mas porque são atores e atrizes talentosos – e ponto. Acho que falta isso no cenário nacional”, relata. 

Hoje, Ana está nas telas da Globo vivendo a dançarina e música Vanda na novela das 19h, “Quanto Mais Vida, Melhor”. Mas, entre gravações, ensaios e entrevistas, a atriz também se dedica às redes sociais, onde passa informações sobre diversas questões que aprendeu – literalmente – na pele, nos livros e na vida. 

Influência

Para seus 1,3 milhão de seguidores, ela explica, entre outras questões, por que não gosta de um termo, infelizmente comum, designado a pessoas asiáticas. Tão comum que os comentários de seus posts são lotados dele: japa.

“Ser chamada assim me incomoda. Principalmente porque carrega um estereótipo que diz respeito a uma imagem de controle, a um estigma que me limita enquanto pessoa e que me fala que eu não posso ser nada além disso: uma pessoa quieta, subserviente, comportada…” 

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Além disso, a atriz explica que o termo reduz todas as pessoas asiáticas a uma única nacionalidade, o japonês. Por fim, ela diz que ele é extremamente problemático porque  estigmatiza todo mundo que é chamado assim como uma pessoa estrangeira. “No meu caso, isso não é verdade. Eu sou brasileira. Nascida e criada por pais brasileiros no Brasil.” 

Ana Hiakri e a mãe
Ana, ainda na infância, e sua mãe (Foto: Reprodução/Instagram)

E é aos pais, inclusive, que Ana deve uma importante parte de si: a independência. “Por causa deles, sempre busquei ser independente de forma financeira e ter autonomia sobre minha própria carreira”, conta. 

Por viver isso, ela fala, nas redes sociais, sobre assuntos que rondam a independência da mulher. “Felizmente, graças ao meu trabalho, eu vejo muitas mulheres que, por terem tido acesso a debates sobre feminismo e violência, saíram de uma relação de dependência em relacionamentos. Acho muito importante que as mulheres tenham a consciência de que podem ser livres”, conclui.

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