“Eu não preciso levantar uma placa para militar. O meu corpo já é político”, diz a cantora e apresentadora trans Paola Valentina

Morte do influencer Paulo Vaz reacende debate sobre saúde mental de trans e travestis no país que mais mata população T no mundo
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“Eu não preciso levantar uma placa para militar. O meu corpo já é político”, diz a cantora e apresentadora trans Paola Valentina
Paola Valentina é cantora e apresentadora trans (Foto: Reprodução/Instagram)

“Não é fácil viver no país que mais mata pessoas trans e travestis do mundo. É um ato de resistência dia após dia, para que, assim, possamos driblar a expectativa de vida daqui e continuarmos vivas depois dos 35 anos.” A frase é da cantora e apresentadora trans Paola Valentina, que sabe muito bem do que está falando. Segundo o IBGE, a expectativa de vida da população trans é metade da média nacional, de 75,5 anos. Sendo assim, não se espera que pessoas como Paola envelheçam. Na verdade, o desfecho ordinário de uma história trans no Brasil é de morte precoce, como aconteceu com Paulo Vaz. 

Influencer e policial trans, Paulo foi encontrado morto ontem (14), em São Paulo. Apesar da causa não ter sido divulgada, o caso foi registrado como morte suspeita pelo 77º DP. “Infelizmente perdemos mais um de nós, que não suportou continuar em uma sociedade tão violenta e desumana”, destacou a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). 

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Para Paola, essa intolerância que acomete a população T (transexuais e travestis) está presente em todos os âmbitos da vida. “Está nas redes sociais e na vida cotidiana. Em todos os lugares e momentos. Inclusive no trabalho, com colegas de ofício. Eu já passei por isso milhares de vezes e é uma das minhas pautas de vida dentro da comunidade”, explica a cantora. 

Transfobias e militâncias

Paola, mulher trans e travesti, começou a carreira artística há 20 anos, mas, por conta de episódios de transfobia, só a retomou recentemente. Para ela, cantar também é um ato de resistência. “É trazer essa voz da mulher trans e mostrar que ela pode, sim, ser musical.”

Mas, para além disso, Paola entende que sua luta é muito mais do que um trabalho ou do que um ativismo. “Eu costumo falar que eu não preciso levantar uma placa para militar – o meu corpo já é político. A partir do momento que eu saio da minha casa, eu já estou militando”, explica. Afinal, a cada lugar que ela ocupa, Paola acaba gerando uma transformação. “As pessoas que estão ali terão que lidar comigo. Entendendo ou não, mas tendo que respeitar esse corpo e onde ele está.” 

Para ela, grande parte da intolerância, da transfobia e da LGBTfobia acontece por conta da ignorância das pessoas. “E, para combater isso, precisamos levar informação, educar”, diz. Por isso, ela também trabalha prestando consultoria sobre diversidade para empresas, afinal, o mercado de trabalho ainda é um espaço extremamente fechado e preconceituoso. Apenas em São Paulo, segundo mapeamento da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da prefeitura, apenas 13% das travestis e 24% das mulheres transexuais declararam possuir trabalho formal.

“Eu não preciso levantar uma placa para militar. O meu corpo já é político”, diz a cantora e apresentadora trans Paola Valentina
“Para combater a intolerância, a transfobia e a LGBTfobia, precisamos levar informação, educar”, diz Paola (Foto: Reprodução/Instagram)

Mesmo que a passos lentos, essa realidade parece estar mudando, o que não impede Paola de trabalhar arduamente. “Se o poder público não faz, a gente tem que atuar nem que seja assim, plantando uma sementinha em cada ação que envolve a nossa vida. Tentamos educar as pessoas de uma forma civilizada, mas, em muitos casos, não conseguimos. É preciso ter muito equilíbrio para conseguir construir uma trajetória, uma jornada”, explica Paola.

Saúde mental e redes sociais

É claro que os comentários preconceituosos não são exclusividade das redes sociais. Na verdade, até em espaços onde a saúde é o pilar principal, a transfobia se manifesta. O caso mais recente é o da youtuber Luiza Marilac, que revelou em suas redes sociais ter sido vítima de preconceito após tentar dar entrada em um hospital particular na Vila Mariana, em São Paulo. “Logo na recepção já fui tratada com descaso e com o pronome errado, chamada de senhor”, contou.

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Enquanto, por um lado, as redes sociais podem ser um espaço para a denúncia desses delitos – afinal, desde 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) considera transfobia e homofobia como crimes de racismo -, elas também podem ser um lugar de fomento para tais comentários e atitudes. Paola tenta não levá-los a sério, e rapidamente apaga tudo aquilo que não a fortalece. 

“Eu, particularmente, tento me esquivar desses comentários, porque não me agrega em nada. Se eu desse ouvidos e atenção a eles, não estaria mais viva, literalmente. As pessoas tendem a dizer que somos vitimistas. Mas ninguém além de nós sabe o que passamos vivendo nesses corpos”, diz Paola. 

Além disso, a cantora se colocou num invólucro de superproteção, como ela mesma chama. Mas isso não significa que as coisas sempre foram boas para ela. “Eu tenho uma religiosidade e acho que isso me ajuda muito. Também procuro fazer coisas que eu realmente gosto. Mas, há muitos anos, quando eu enfrentava essa questão no mercado de trabalho, antes de estar empregada, tive uma depressão horrorosa que durou quase cinco anos. Então tudo isso me afetou sim, me deixou doente”, lembra.

“Eu não preciso levantar uma placa para militar. O meu corpo já é político”, diz a cantora e apresentadora trans Paola Valentina
Para Paola, o percurso é longo, mas conversando e agregando, podemos chegar lá (Foto: Reprodução/Instagram)

Hoje, Paola coloca tudo o que importa na frente, mas sabe que não é todo mundo que tem uma mentalidade preparada para agir da mesma forma. “Por isso que a gente ainda vê muitos casos de suicídio, ou de outros tipos de doenças, acometendo corpos trans e travestis”, conta.

Para ela, é necessário ter uma rede de apoio em relação, principalmente, aos comentários transfóbicos feitos nas redes sociais. “E que possam existir leis que protejam e que cuidem da nossa integridade. Elas, infelizmente, ainda não existem.”

Luz no fim do túnel?

Segundo Paola, suas vivências e a realidade que a cerca apontam que há uma mudança em curso no Brasil. Hoje, travestis e transexuais alcançam espaços de representatividade, a exemplo de Linn da Quebrada no “Big Brother Brasil” e de Valentina Sampaio na capa da “Vogue”. Mas o percurso é longo e a linha de chegada ainda está longe.

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“Estamos em um país estagnado diante da política e da evolução humana. Temos muito a percorrer. Precisamos de muito trabalho, muita consciência, muita empatia e muita política pública para que as coisas possam chegar a um âmbito mais confortável”, diz.

A cantora ressalta, ainda, que essa dificuldade de perspectiva e os preconceitos não poupam nem as pessoas LGBTQIAP+. “Não é porque a pessoa é da comunidade que ela não destila algum tipo de intolerância. Temos pessoas machistas, temos pessoas racistas, temos pessoas transfóbicas… É muito complicado. Então, acho que quando a gente conseguir conversar, se entender e agregar, em vez de segregar, começaremos também a mudar as coisas.”

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