Ana Paula Pisaneschi: a empreendedora que decidiu humanizar o serviço de cobranças no Brasil

Conheça a história da mulher que deixou a direção de uma empresa com cultura baseada em desigualdade de gêneros, criou as próprias startups e conquistou aporte financeiro da gigante varejista Via
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Ana Paula Pisaneschi: “No meio do caminho, chegou a Via de aviãozinho. Ela não estava dentro do processo, mas já prestávamos serviços sempre com feedbacks muito favoráveis” (Foto: divulgação)

Ela decidiu virar o jogo e empreender quando se deu conta de que era constantemente promovida em uma companhia, recebia cada vez mais responsabilidades com um time em constante crescimento, mas não tinha aumento na remuneração porque o diretor não queria satisfazê-la e “arranjar problema com o restante da empresa”.

Ana Paula Pisaneschi, que até então não havia vivenciado a desigualdade de gênero na família ou em outros círculos sociais, descobriu esta realidade e nunca mais voltou ao mundo corporativo como funcionária.

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Sorte do mercado de cobranças no país que conquistou uma empresária visionária sobre a necessidade de humanizar o setor e não permitir que dívidas destruam o relacionamento entre clientes e companhias por causa de abordagens chatas e irritantes, como ela mesma classifica.

A Via – ex-Via Varejo que opera marcas como Ponto e Casas Bahia – viu potencial e contratou a startup Uffa de Pisanesch com o sócio Alexandre Rosa. Em pouco mais de um ano, a prestação de serviços virou um aporte financeiro da gigante brasileira do varejo, que preferiu uma participação na nova companhia como primeira investidora em vez de manter apenas a relação empresa-fornecedor.

O valor investido pela Via na Uffa na primeira rodada de negócios não foi revelado, mas Pisanesch já anuncia uma segunda rodada em até quatro meses tendo como meta uma faixa entre R$ 10 milhões e R$ 15 milhões, aberta para mais investidores.

Veja a história da mulher que trocou o emprego em uma empresa com a desigualdade de gêneros como cultura por uma carreira de sucesso como empreendedora.

EQL – Como foi o aporte financeiro feito no Uffa pela Via?

Ana Paula Pisaneschi – Há pouco mais de um ano e meio, quando montamos o Uffa, nós decidimos não fazer nenhum tipo de captação nas fases iniciais pensando na robustez da empresa e na governança no longo prazo. Não fazia sentindo ter uma diluição dos fundadores muito expressiva por um cheque que não mudaria nossa vida. Por isso, decidimos por esta rodada agora, em que a empresa já fatura e tem contas com grandes clientes. Contratamos uma consultoria especializada para o valuation – processo de avaliação do valor da empresa – para dar mais robustez ao processo de captação. No meio do caminho, chegou a Via de aviãozinho. Ela não estava dentro do processo, mas já prestávamos serviços sempre com feedbacks muito favoráveis desde a parte técnica até a experiência final do usuário. Aí, enquanto estruturávamos a carteira de clientes da Via, ela nos ofereceu a oportunidade de uma parceria um pouco mais densa e profunda.

“Até brincadeirinhas idiotas, a gente enfrenta. Antigamente, eu dava uma risadinha. Hoje, dou uma invertida” (Foto: divulgação)

EQL – Como era a prestação de serviços para a Via?

APP – O Uffa é um marketplace de crédito e de negociação de dívidas. A prestação de serviço para os credores é conseguir fazer a intermediação entre quem é o detentor da dívida e quem deve. A diferença do Uffa para um escritório de cobrança, call center e, até mesmo, outros portais de negociação de dívida é que toda jornada e experiência dentro do portal foi pensada para atender o usuário final e não o credor. O Uffa foi desenhado para atender plenamente quem precisa resolver um problema financeiro. Quando a gente inverte este mindset – mentalidade – e constrói uma plataforma que se preocupa com as pessoas e não principalmente com as empresas, no final do dia, todas as partes ficam felizes porque quando a gente se preocupa mais com as pessoas, o resultado é muito maior e, por sua vez, as empresas também conseguem índices de recuperação mais interessantes. Então, o Uffa tem toda a carteira da Via de clientes inadimplentes para que eles tenham acesso à plataforma de modo a negociar suas dívidas.

EQL – A gente percebe um movimento do segmento de varejo de se reinventar para manter clientes em sua base como uma reação à atual crise econômica no país.

APP – O que é mais barato como estratégia para a manutenção de clientes? Fidelizar quem já comprou a sua marca ou atrair um novo? É muito mais barato fidelizar o cliente que já me conhece, já entrou, comprou e consumiu meu produto ou serviço. Não faz sentido as empresas romperem esta ligação que, para ser criada, foi investido muito dinheiro. Essa relação não pode ser quebrada por uma ligação de cobrança chata e irritante. Ou por um processo de cobrança que não tenha empatia com o consumidor final. Hoje em dia, a gente escolhe e não é mais refém de marca. As pessoas não têm mais apego a uma marca e sim à proposta e aos valores desta marca. Coisas intangíveis que, no passado, a gente não colocava no peso do serviço, mas agora contam.

EQL – Como fica o comando do Uffa após o investimento da Via?

APP – Estamos muito felizes porque a Via entende que a startup precisa de autonomia para manter o caráter de inovação. O Uffa negociou com a Via total independência administrativa e estratégica da empresa. Obviamente, desenharemos produtos e serviços em conjunto, mas o Uffa tem total autonomia na tomada de decisão.

EQL – Como ficou a composição societária?

APP – Sou eu e Alexandre Rosa e, agora, a Via.

EQL – E em percentual? É possível falar?

APP – Ainda não.

EQL – Como foi sua trajetória até ser empreendedora? Já passou por situações desafiadoras em relação à igualdade de gêneros no mercado de trabalho?

APP – Na minha família e em relações de amizade, eu fui muito privilegiada. Eu nunca tive qualquer discriminação de gênero. Isso nunca foi latente e nunca enxerguei este problema. E a gente só consegue enxergar problema na sociedade quando nos afeta de alguma maneira. Eu entrei em uma empresa e cresci bastante ali durante cinco anos. Sou muito grata pela oportunidade de crescimento. Eu trabalhava com áreas de planejamento estratégico, tinha acesso a todos os números da empresa e percebi que eu recebia mais responsabilidades, mas o dinheiro não vinha. Eu estava sendo eficiente até porque ninguém dá responsabilidades a uma pessoa se ela não está apresentando resultados. Mas eu não tinha compensação. No começo de carreira, o meu intuito era mostrar crescimento, crescimento e crescimento. Eu entendia que o resultado em dinheiro viria mais a médio e longo prazos. Não que eu não precisasse de dinheiro. Eu precisava muito. Um belo dia, eu fui questionar o VP – vice-presidente – da companhia após uma recente promoção de cargo sem aumento de remuneração. “Eu sou a gestora que menos recebe”, comentei. Eu estava no cargo de gerência geral e tinha coordenador que recebia muito mais do que eu e não tinha nem um terço do tamanho do meu time, muito menos minhas responsabilidades. Minha área era responsável pelo faturamento da empresa. O comentário que ouvi do VP foi o seguinte: “Ana Paula, se eu equiparar o seu salário, eu vou te satisfazer, mas eu vou arranjar problema com todo mundo”. Foi naquela hora, naquele momento, que eu percebi o que estava acontecendo. A única gestora mulher da empresa com 5 mil funcionários era a que menos recebia. Pensei: “Esta situação não serve para mim”.

EQL – Foi aí que você começou a empreender?

APP – Eu tinha uma ideia engavetada de uma demanda reprimida de mercado. Já tinha aquilo estruturado e pensei: “Quer saber de uma coisa? A hora é agora”. Na semana em que fui promovida a diretora daquela companhia, eu me demiti. Fui lançar a minha empresa dentro daquilo em que eu acreditava. Minha empresa, minhas regras. Eu precisava fazer diferente. Eu tinha 25 anos.

EQL – E todo um caminho de luta de quem empreende.

APP – Quando você começa, mais erra do que acerta. O mais importante é que você consiga fazer alguma coisa com esses erros e ser bastante resiliente. Nesta trajetória, eu comecei a vivenciar o mundo como ele é de verdade. A minha primeira empresa, a Virtoue, era de modelagem de dados para cobrança. Foi a primeira empresa do gênero no Brasil e fui a primeira mulher a criar uma empresa de analytics – análise de dados. Não me recebiam. Bati muito na porta de muita gente que não me recebeu por dois principais motivos: eu ser mulher e ser nova. O que hoje em dia é uma super qualidade, o mercado adora isso, lá atrás não era muito bem visto. Quebrei muita cabeça. Já como Tróchia – segunda startup da Ana Paula Pisaneschi – participei de muitas reuniões em que eu era a pessoa especializada no tema, mas só via perguntas sendo direcionadas ao meu sócio, Alexandre. Ele redirecionava tudo para mim. Isso aconteceu bastante e exigiu jogo de cintura. Situações assim acontecem com 99,9% das mulheres e, infelizmente, minha história não é diferente de nenhuma. Até brincadeirinhas idiotas, a gente enfrenta. Antigamente, eu dava uma risadinha. Hoje, dou uma invertida (risos). Você vai conseguindo criar uma casca que a maturidade também vai te trazendo.

“Alexandre e eu somos antônimos. Nós somos absolutamente diferentes em todos os aspectos e isso dá muito certo” (Foto: Divulgação)

EQL – O seu sócio, Alexandre Rosa, é de outras iniciativas. Como é esta parceria?

APP – Conheci o Alexandre como Virtoue, em um trabalho em conjunto de consultoria. A gente viu ali uma oportunidade de mercado. Então, desta prestação de serviços entre cliente e fornecedor, nasceu uma ideia e a gente resolveu montar a Tróchia, empresa de gestão dos chamados distressed assets, ou ativos não performados, a exemplo de títulos emitidos por empresas em recuperação judicial. Já são seis anos e conquistamos um portfólio sob gestão de R$ 1,6 bilhão de valor de face. Estamos, inclusive, buscando um CEO para a Tróchia porque uma das condições para o aporte da Via no Uffa foi a nossa dedicação exclusiva. Alexandre e eu somos antônimos. Nós somos absolutamente diferentes em todos os aspectos e isso dá muito certo.

Luciene Miranda é repórter especial e colunista na Elas Que Lucrem

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