Entenda o que muda com a aprovação da Lei Mariana Ferrer e o que ainda precisa avançar na Justiça brasileira

Norma foi batizada em referência à influenciadora ofendida por um advogado durante audiência do processo em que acusava empresário de tê-la dopado e estuprado
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Mariana Ferrer e o empresário André de Camargo (Foto: Reprodução)

No último dia 22 de novembro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) sancionou a Lei Mariana Ferrer, que prevê punição para atos que atentem contra a dignidade de vítimas e testemunhas durante julgamentos.

O Projeto de Lei 5.096/2020 foi apresentado em novembro de 2020 após a repercussão nacional do caso da blogueira Mariana Ferrer, de Santa Catarina. Ela acusa o empresário André de Camargo Aranha de tê-la dopado e estuprado durante um evento no bar Café de La Musique, em Florianópolis, em 2018. Na época, a influenciadora tinha 21 anos e dizia ser virgem.

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Durante uma audiência do processo, o advogado de defesa, Cláudio Gastão da Rosa Filho, exibiu fotos de Mariana na tentativa de argumentar que o ato criminoso teria sido consensual. Ele chegou a afirmar que as imagens eram “ginecológicas” e que “jamais teria uma filha” do “nível” da blogueira. Ao ouvir as ofensas, Mariana não se conteve e caiu no choro. Em seguida, o advogado continuou: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”. O juiz presente não fez nenhum tipo de intervenção. 

A humilhação sofrida por Mariana não é incomum. Pelo contrário, muitas vítimas ainda são constrangidas em situações nas quais deveriam ser acolhidas, como quando denunciam um estupro. Apesar disso, ainda não existia um tipo específico de lei para enquadrar esses casos de crime contra a dignidade sexual.

O que muda na prática?

Em entrevista à Elas Que Lucrem, a advogada Mariana Nery, especializada em direito da mulher, explica que a nova legislação implantou três alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal, com o objetivo de determinar que o juiz assegure a integridade física e psicológica das vítimas. Caso contrário, poderão responder civil, penal e administrativamente. 

A especialista esclarece que a lei também aumenta a pena no crime de coação, que é quando uma pessoa usa de violência ou grave ameaça durante um processo judicial. Atualmente, a punição para essa prática é de um a quatro anos de reclusão, mas fica sujeita ao acréscimo de um terço em casos de crimes sexuais. 

O texto diz ainda que, em audiências e no julgamento, está proibida a manifestação sobre fatos que não estejam no processo e a utilização de linguagem, informações ou material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas.

Mariana Nery destaca que a mudança traz mais arcabouço jurídico para punir juízes, promotores, policiais e todos os agentes institucionais que contribuam para a vítima passar pelo que ela chama de “revitimização”. 

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Antes da lei, a advogada lembra que denunciar esse tipo de conduta era complicado e feito com base no artigo 5º da Constituição Federal, que fala sobre a intimidade, a honra, a garantia da dignidade humana e a imagem dos cidadãos. 

“Mas é importante entender que há uma diferença muito grande entre a lei maior, a Constituição, e os Códigos Penais, que são muitos antigos e precisam de atualização no Brasil. Nós não tínhamos algo específico que coibisse a prática como agora temos. Era difícil fazer uma denúncia desse tipo. Muitas vezes, o promotor falava que não podia dar andamento porque não tinha crime tipificado – mesmo com o argumento da Constituição. Por isso, o Brasil precisava dessa lei que explica toda a conduta. Está escrito com todas as letras o que não pode ser feito. Essa é a grande diferença”, explica. 

Avanço é importante, mas não suficiente

Apesar de reconhecer a importância da nova legislação, Mariana Nery não considera que seja o suficiente. Para ela, embora seja um avanço no contexto atual do país, o ideal seria a criação de um novo tipo penal, ou seja, um crime que falasse só sobre isso, como a Lei Maria da Penha, por exemplo. “Temos algumas mudanças, como o aumento da pena, mas falta algo mais substancial, especialmente nos crimes sexuais, porque o Brasil ainda é muito antiquado e preconceituoso e a nossa lei penal evoluiu muito devagar em relação a esses crimes”, lamenta. 

No Brasil, pelo menos 8,9% das mulheres já sofreram algum tipo de violência sexual na vida, segundo dados da Pesquisa Nacional da Saúde (PNS), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. 

Apesar do número alto de vítimas, a advogada garante que esse tipo de crime ainda é muito subnotificado e os dados são muito maiores. “Isso acontece, principalmente, porque é difícil a comprovação. As pessoas acham que o estupro aconotece em um beco, com um cara mascarado que apoonta uma arma e viola a vítima. Mas a maior parte das violências sexuais acontece dentro de casa, por pais, irmãos, tios ou até amigos. É difícil denunciar porque há o medo da família ficar contra e não ter provas forenses. Na prática, fica a palavra de um contra o outro. E a palavra da mulher é sempre desvalorizada, como aconteceu com a Mari Ferrer.”

O mesmo levantamento também embasa o argumento da advogada. A maior parte das agressões sexuais contra mulheres foi perpetrada por companheiros, namorados, cônjuges ou ex-parceiros, citados em 53,3% das respostas. A violência sexual ocorreu, em 61,6% dos casos, na residência das próprias vítimas.

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“Quando não há provas forenses, os advogados costumam expor o passado da mulher para poder colocar a vítima em julgamento. E isso é o que a lei vai proibir. Gostaria de uma legislação mais dura, com mais artigos, e não só com alterações em artigos existentes. Também queria ver políticas públicas, como proporcionar cursos de atualização para esses agentes institucionais. O machismo está enraizado na sociedade”, avalia a advogada.

No caso de Mariana Ferrer, em 7 de outubro, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) decidiu manter a sentença de absolvição do empresário. Na ocasião, os desembargadores concluíram que não havia provas que sustentassem a acusação.

André de Camargo Aranha sempre negou o crime. Segundo versão do empresário, a influenciadora teria feito sexo oral nele, mas de maneira consensual. A perícia que realizou o exame de corpo de delito na vítima encontrou sêmen do empresário e sangue dela. Conforme relatório do exame da perícia, o hímen de Mariana Ferrer havia sido rompido.

A especialista em direito da mulher lembra também que Mariana Ferrer sofreu no início do processo para poder fazer a denúncia. Por isso, ela diz que a lei deveria ser ampliada para proteger vítimas e testemunhas antes da fase processual, quando  chegam às autoridades policiais para comunicarem um crime. “Na delegacia, por exemplo, muitas são desacreditadas.”

Contudo, ela acredita que as vítimas podem ter mais segurança para denunciar esse tipo de crime após a aprovação da lei. “Acho que o cenário melhora um pouco, caso os direitos humanos delas sejam violados no processo. Pelo menos agora nós, advogadas, podemos ter respaldo legislativo e arcabouço jurídico para tentar punir quem comete esse crime. Lutamos muito para conseguir criar novos dispositivos que sejam específicos para situações que sabemos que acontecem no dia a dia e que muitas vezes saem impunes.”

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