Mais que rainhas de bateria: a presença feminina na história do Carnaval

De taieiras a Chiquinha Gonzaga, a participação das mulheres na origem da festividade beira ao protagonismo
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Wikimedia Commons
Se as mulheres mudaram a história do Carnaval, o Carnaval também mudou a história das mulheres (Foto: Wikimedia Commons)

Alvo dos holofotes, as rainhas de bateria são as musas que comandam o ritmo das escolas de samba nos grandes desfiles de Carnaval. Com muito brilho e curvas à mostra, elas cumprem uma espécie de ritual e personificam a beleza do corpo feminino, por muitas vezes sexualizado e objetificado. Para quem observa de longe, pode até parecer que a presença do feminino no Carnaval se resume a lantejoulas, peitos e bundas – mas é bem mais do que isso. 

Foi a pianista Chiquinha Gonzaga que criou a “Abre Alas”, primeira marchinha de Carnaval da história, para o grupo Rosas de Ouro, em 1889. Também foram as taieiras, grupos de mulheres negras que vestiam trajes típicos angolanos, que popularizaram os desfiles de rua ao som de ritmos africanos. É fruto delas toda a inspiração para as baianas dos desfiles da Sapucaí e do Anhembi. Grandes responsáveis pela caracterização do samba como um gênero carnavalesco, essas mulheres provavelmente foram as primeiras “rainhas de bateria” da história – se é que podemos mudar o significado da famosa nomenclatura. Mas a questão é: “rainha” é uma palavra certeira para defini-las. 

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Rita Gullo, cantora, historiadora e autora do livro “Carnaval”, tem a evolução do samba na ponta da língua e concorda com a afirmação. “Esses dois exemplos já mostram o quanto as mulheres foram protagonistas de uma maneira bastante significativa”, destaca. “O Carnaval não teve nada muito característico no repertório por mais de 300 anos. A polca e a valsa, que são ritmos europeus, eram ouvidas nos bailes e nas ruas até Chiquinha Gonzaga lançar a primeira música com letra composta especialmente para o Carnaval. Uma das canções mais tocadas nos bailes até hoje, passados mais de 120 anos.” 

Por ter criado a marchinha “Abre Alas” em 1889, o legado de Chiquinha está marcado na história. Outras mulheres, no entanto, passaram por algumas dificuldades na hora de atestar a autoria de suas obras. Nos anos 1960, a cantora e compositora carioca Dona Ivone Lara era impedida de assinar suas composições na Império Serrano, sua escola de samba de coração. Na época, ela era obrigada a deixar um primo assumir a autoria de suas músicas porque não fazia parte dos códigos sociais da época a participação feminina nos grupos de compositores.

Dona Ivone Lara (Foto: Reprodução Globo)

Com o tempo, Dona Ivone conseguiu recuperar sua autoria e ficou conhecida como “Rainha do Samba”, um título que honra o seu papel como primeira mulher a assinar um samba-enredo e a fazer parte da ala de compositores de uma escola. Sua trajetória representa diversas mulheres na história do Carnaval – muitas delas apagadas da memória coletiva para sempre, pois não tiveram tempo de reaver suas obras. Apenas algumas décadas atrás, essa era a situação mulher em uma das maiores festividades nacionais. Mas qual é a origem desse comportamento? 

REFLEXO DA SOCIEDADE

“O Carnaval reflete aquilo que já acontece na sociedade”, resume Rita, de forma direta. A origem do Carnaval brasileiro remonta a uma tradição trazida pelos portugueses na época da colonização. Nela, os homens saíam às ruas nos dias que antecediam a Quaresma para travar batalhas com baldes d’água e seringas – uma guerra aquática que seria almejada por boa parte das crianças do século 21. Enquanto isso, o papel da mulher era ficar em casa. A folia era dominada pelos homens – e continuou desta forma por um bom tempo.

Ao longo dos anos, novos costumes festivos foram surgindo, com bailes à fantasia e desfiles de carros alegóricos, mas as mulheres “de família” continuavam distantes da festividade. As prostitutas, claro, podiam participar – de preferência despidas sobre os carros alegóricos. Às mulheres de casa, sobrava assistir os desfiles da janela. Foi apenas entre o final do século 19 e o início do 20 que a participação feminina no Carnaval começou a ser um pouco mais tolerada – pelo menos quando se leva em conta as cidades grandes. 

Longe dos grandes centros, a participação das mulheres foi mais precoce. O Carnaval brasileiro e o samba existem, em grande parte, graças às “tias”, baianas que abriam suas casas para a reunião dos sambistas e ofereciam um espaço seguro para que eles se reunissem sem serem perseguidos pela polícia. “A mais famosa delas foi Tia Ciata, mãe de santo e quituteira que se tornou uma liderança entre os negros. Os músicos iam tocando e cada sambista inventava um verso. ‘Pelo Telefone’ foi feita assim, na casa dela, no fim de 1916. Foi o primeiro samba registrado no Brasil, mudando a história desse gênero para sempre”, conta Rita.  

“São poucas as pessoas que conhecem a história das tias baianas, apesar de elas terem um papel fundamental. Deve-se a elas a ‘Ala das Baianas’ nas escolas de samba. Os ranchos, precursores dos blocos de Carnaval, passavam em frente à casa da Tia Ciata como uma espécie de homenagem”, completa. Um ponto fora da curva em uma sociedade que afastava as mulheres do Carnaval. É assim que podemos definir as “tias”. Analisando friamente a história, é fácil explicar o porquê de elas terem sido invisibilizadas por tantos anos – o que também impactou os tempos difíceis vividos por pessoas como Dona Ivone, em 1960. 

“ELAS FICAVAM ESCONDIDAS ATRÁS DE PANELAS”

Por muitos anos, o ritmo predominante continuou o mesmo – o da omissão. Celia Domingues, presidente da Associação de Mulheres Empreendedoras do Brasil (Amebras) e diretora comercial da Mangueira, destaca a participação feminina reduzida nas decisões das entidades do Carnaval. “Elas ficavam escondidas atrás de panelas, cadeiras e cortinas. A diretoria das escolas sempre foi um espaço liderado pelos homens”, diz. 

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Nascida no Morro da Mangueira, a foliã foi uma das primeiras a mudar esse cenário entre as grandes agremiações cariocas. “Tenho 64 anos e desfilo há 50. Então, digo que minha história com o Carnaval começou quando eu nasci”, descreve. Ex-primeira dama e vice-presidente social da escola que dá nome à região onde nasceu no Rio de Janeiro, Celia conta que sempre viu na festa algo além de diversão, folia e samba. “Aquilo é um mercado e um produto muito bom. Quando comecei a me envolver com a administração da escola, quase ninguém ainda falava sobre economia criativa no terceiro setor”, lembra. 

Celia Domingues (Foto: Reprodução Instagram)

Com esse viés empreendedor, a carioca fez questão de tirar as mulheres da escola da posição de espectadoras para colocá-las em ação. “Comecei com a ala das baianas e com o departamento feminino. Não queria que elas fossem só recepcionistas e cozinheiras, então elas passaram a sentar na mesa de reunião e dar sugestões para o projeto de Carnaval”, afirma. Hoje, segundo Celia, além das musas dos desfiles, a Mangueira já conta com participação feminina até mesmo na bateria, entre ritmistas, cantoras e intérpretes. Apesar de levantar a bandeira da representatividade, a diretoria ressalta que a intenção não é disputar posições com os homens – e sim mostrar que elas também possuem capacidade de somar naquele ambiente. “Se uma mulher preparada está na gestão da escola de samba não é para atrapalhar ou prejudicar. Ela é mais um braço, uma força para a equipe na hora de contornar os desafios”, conclui. 

VAI DAR SAMBA

Se as mulheres mudaram a história do Carnaval, o Carnaval também mudou a história das mulheres. Para Celia, a celebração é uma ferramenta de inclusão, transformação e resgate, impactando positivamente a liberdade de expressão feminina ao longo dos anos. “Ela mostra nosso potencial artístico, nosso poder de opinar e de tomar decisões. Porque isso aqui é um desafio, é matar uma manada por dia”, afirma.

Atualmente, no Brasil, existem cerca de 36 blocos de rua produzidos e comandados por mulheres. O número pode parecer baixo, mas, em 2015, o “Mulheres Rodadas”, grupo carioca que se autodenomina o primeiro bloco feminista do país, reuniu 3.000 pessoas nas ruas do Rio de Janeiro e chamou atenção até mesmo da ONU Mulheres. Já em São Paulo, o coletivo carnavalesco voltado para a promoção das culturas afro-brasileiras Ilú Obá De Min soma mais de 450 integrantes fixas, independentemente da época do cortejo. “Nosso objetivo realmente é dar voz e desmistificar esse negócio de que mulher não pode tocar tambor”, diz Adriana Aragão, cofundadora do bloco. 

Além de inclusão, na Amebras, a contribuição feminina para o Carnaval também é fonte de renda – e, consequentemente, de mais independência e autonomia. Em relação a isso, Celia explica que a proposta da associação é capacitar mulheres para atender uma demanda de produção ligada a souvenirs – como é o caso da linha de moda, que oferece peças de roupa que fazem referência ao Carnaval, e a de artesanatos, que comercializa itens feitos a partir de biscuit, pintura e esculturas de gesso. “Nós conseguimos contar a nossa cultura e também ajudar a economia das famílias dessas artistas”, explica. 

No saldo geral, a diretora da Mangueira diz que há motivos para comemorar – o universo do Carnaval já foi mais machista e desafiador para as foliãs. “Hoje, as mulheres que desfilam na escola são vistas como profissionais da dança, não como mulatas do rebolado”, aponta. No entanto, a luta pela equidade de gênero ainda promete dar samba. “Evoluímos, mas não tão rápido quanto eu gostaria”, finaliza.

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