“Um brasileiro defender o nazismo é absolutamente ridículo”, diz a futura rabina Andrea Kulikovsky

Para a paulista, que luta pela igualdade no judaísmo, a onda de antissemitismo e apologia ao nazismo tem origem no medo do desconhecido
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Divulgação
Daqui dois anos, Andrea Kulikovsky entrará para o seleto grupo de rabinas brasileiras (Foto: Divulgação)

Em seu arsenal de memórias da infância, a lembrança favorita de Andrea Kulikovsky são as visitas à sinagoga com seu avô. Era ao lado dele, todos os finais de semana, que ela aprendia o que era ser judia e se apaixonava pela vida comunitária. “Era uma coisa minha e dele”, recorda. Após alguns anos, no entanto, Andrea entendeu que o judaísmo era muito mais do que uma tradição familiar. 

Aos 12 anos, fez o bat mitzvah – a cerimônia de maioridade religiosa para meninas -, e logo começou a estudar mais profundamente o judaísmo. No início da vida adulta, embora tenha optado por cursar direito, também era voluntária na comissão de culto de sua sinagoga e se mantinha envolvida na vida comunitária – a ponto de começar a pensar em estudar o rabinato. “Naquele momento, eu não conhecia nenhuma mulher rabina no Brasil. Além disso, esse era um desejo caro. Eu precisaria sair do país para estudar. Parecia tão impossível que eu simplesmente não conversei com ninguém sobre isso e segui o meu caminho no direito.” 

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Foi apenas anos depois, por um “chamado do destino” – como ela define -, que o rabinato se tornou uma possibilidade viável. Hoje, Andrea está a apenas dois anos da formação como rabina – quando conseguir concluir o curso, entrará para a seleta lista de rabinas brasileiras que, atualmente, conta com apenas seis representantes. Para a paulista, entrar nesse rol é uma honra. “Meu papel é criar espaços, e não tem uma maneira melhor de fazer isso do que sendo um exemplo. O simples fato de eu estar no púlpito já gera, nas meninas, a noção de que elas têm um lugar de pertencimento ativo”, destaca. 

Mais do que representatividade, a igualdade nas sinagogas é, para Andrea, uma forma de se aproximar da sociedade e fazer com que as pessoas se acerquem do judaísmo. “Muitas pessoas ainda estereotipam o judeu com a imagem dos ortodoxos, o que não está errado, mas vem de um lugar de desinformação. Hoje em dia, já temos outras correntes da religião, como o reformismo e o conservadorismo, além da ortodoxia”, explica. “A desinformação é comum, mas é muito perigosa. O aumento do antissemitismo, por exemplo, tem origem no medo do desconhecido. Precisamos nos inserir na sociedade e mostrar quem somos de verdade.” 

Para ela, que cresceu enxergando o judaísmo com afeto, transmitir esse sentimento é a sua principal meta de vida. “Acho que existe um trabalho muito importante para validar todas as correntes da religião. E esse é um trabalho que eu me vejo fazendo.” No cenário atual de aumento do antissemitismo, essa atuação se torna ainda mais necessária. De acordo com a Safernet, ONG que promove direitos humanos nas redes sociais e monitora sites radicais, em maio de 2020, 204 novas páginas de conteúdo neonazista foram criadas no Brasil. O número é sete vezes maior do que o registrado em 2018. 

Outra pesquisa global, divulgada em 2020 pela Anti-Defamation League (ADL), indica que a porcentagem de brasileiros que nutrem algum sentimento antijudaico cresceu de 19% em 2019 para 26% no ano inicial da pandemia de Covid-19 – a expectativa dos especialistas, por mais assustador que pareça, é que esse número tenha aumentado ainda mais durante a crise gerada pelo coronavírus. Em 2022, até vivenciamos casos de influenciadores defendendo abertamente a existência de partidos nazistas. Oitenta anos depois do início da Segunda Guerra Mundial, ainda é urgente falar sobre a violência que o antissemitismo representa. 

Em entrevista a Elas Que Lucrem, Andrea Kulikovsky falou sobre a sua trajetória e a importância da informação sobre o judaísmo. Leia, a seguir, a conversa completa: 

Elas Que Lucrem: Antes de realmente decidir estudar o rabinato, você chegou a trabalhar em outras áreas, como o direito? 

Andrea Kulikovsky: Sim. Eu terminei os estudos e trabalhei na área de direito empresarial, que não tem nada a ver com a minha vida hoje [risos], embora tenha me gerado um bom conhecimento. Trabalhei alguns anos, mas uma hora percebi que não era feliz com a minha vida profissional. Por isso, decidi estudar gastronomia. Eu sempre amei cozinhar, então achei que isso fosse preencher aquilo que faltava dentro de mim. Fiz um curso técnico, trabalhei em restaurantes e abri meu próprio negócio de bolos decorados e pequenos jantares. Em pouco tempo, comecei a me especializar em doces judaicos – já era uma espécie de volta à minha origem. Quando há um chamado em sua vida, você pode até não perceber, mas ele está sempre lá. De repente, eu vivia pelo calendário judaico, já que produzia os doces para as festas da comunidade. 

Continuei assim, mas a grande virada da minha vida veio quando meu pai teve um AVC. Por mais que eu gostasse do que fazia, o meu negócio não dava tanto dinheiro. A minha contabilidade era apertada. Eu tinha R$ 10 de lucro após um ano de trabalho, pagando todas as minhas contas. Naquele momento, com a situação do meu pai, decidi me afastar do trabalho para cuidar dele. Quem trabalhou a vida inteira, no entanto, não consegue simplesmente parar assim, do nada, então eu me envolvi com ações voluntárias da minha comunidade. Fui voluntária no departamento de educação da minha sinagoga, que foi onde eu cresci. Foi assim que eu voltei para a comunidade. 

EQL: Foi aí que a ideia de estudar o rabinato voltou? 

AK: Eu voltei como voluntária, fazendo parte de uma comissão. Seis meses depois, o diretor de ensino, que estava saindo da sinagoga, disse para eu ficar no lugar dele. Eu entrei na direção do ensino e da juventude e fiquei lá durante cerca de oito anos. Um dia, o cantor litúrgico da sinagoga, que estava abrindo um curso para a leitura da Torá (já que a leitura exige uma melodia), me chamou para fazer o curso, já que eu era diretora. 

Naquela época, a minha sinagoga não era igualitária. As mulheres não liam a Torá. As mulheres sentavam junto com os homens apenas na sexta-feira, mas nos outros dias não. Não havia um lugar aberto para elas na sinagoga, então por que eu faria o curso? Mesmo assim, ele insistiu para que eu aprendesse, então eu fui. Fiz a primeira aula e me apaixonei. Parecia que tinha algo dormindo dentro de mim, que acordou naquele dia.

A partir de então, comecei a brigar para que eu e outras mulheres conseguíssemos autorização para ler a Torá na sinagoga. Esse foi o primeiro passo de uma grande conquista. Foi aí que as mudanças realmente começaram a acontecer. Eu fui me envolvendo com mais estudos, com o movimento reformista mundial e com encontros judaicos internacionais. Um dia teve um evento em São Paulo, no qual eu fui ler a Torá, e uma senhora da Inglaterra se aproximou de mim e perguntou se eu já tinha pensado em ser rabina. 

Foi o bastante para colocar uma pulguinha atrás da minha orelha. No ano seguinte, fui para Jerusalém, e foi lá que eu tomei a decisão. Era a minha hora de estudar rabinato. Me inscrevi em uma escola na Argentina e comecei a fazer o curso online. Agora só faltam dois anos. 

EQL: Você falou sobre a falta de igualdade em algumas sinagogas. Como está a situação hoje em dia? Está melhorando? 

AK: Este é um ano muito marcante para as mulheres no judaísmo. Celebramos os 100 anos da primeira cerimônia de bat mitzvah – a cerimônia de maioridade religiosa para meninas. O bar mitzvah, focado nos meninos, já existia, mas, para as meninas, ainda não. Foi o rabino Mordecai Kaplan, dos Estados Unidos, que desenvolveu a cerimônia para a filha dele, inspirado no movimento feminista norte-americano. 

Além disso, também celebramos os 50 anos da ordenação da primeira rabina. Hoje, já sabemos que houve uma anterior a essa, antes da Segunda Guerra Mundial, de uma rabina chamada Regina Jonas. Foi uma ordenação escondida. Ela foi ordenada nos anos 1930, trabalhou na Alemanha e foi morta na guerra. Os trabalhos dela ficaram perdidos e ninguém nunca falou sobre o assunto. Só depois que o Muro de Berlim caiu, sua existência foi descoberta. Mas, há 50 anos, a rabina Sally Priesand foi a primeira mulher oficialmente ordenada como rabina. Este já é um ano muito marcante pra gente, importante de ser celebrado. 

Eu acho que o meu envolvimento veio por uma inquietação comunitária, pela busca do pertencimento real da mulher na comunidade judaica brasileira. Não foi apenas por uma inquietação pessoal. Eu tenho uma amiga, a Luciana, que se formou como rabina há cerca de 20 anos. Ela abriu muitas portas e me inspirou nesse processo também. O olhar feminino traz questionamentos diferentes. Temos muitos textos escritos por homens, inclusive sobre mulheres. Homens que escrevem sobre gravidez, menstruação e prazer em nome das mulheres. Está na hora de nós assumirmos esse texto. Também somos parte dessa narrativa. Precisamos participar. 

EQL: Por mais que dê para contar em uma mão o número de mulheres rabinas no Brasil, essa representatividade está aumentando nos últimos anos. Como você enxerga esse cenário? 

AK: Nos Estados Unidos, a situação já é bastante equiparada em termos numéricos. Além de mulheres, lá também vemos muitas pessoas da comunidade LGBTQIA+ na comunidade. No Brasil, ainda somos poucas, mas nós trabalhamos juntas e entendemos a importância de construirmos essa narrativa juntas. Não tem muitas comunidades liberais no Brasil, então precisamos criar espaços. Se tem uma mulher no púlpito, não significa que não tem lugar para outras. Precisamos trabalhar para criar esses espaços para outras mulheres. Esse movimento só é válido se gerarmos a possibilidade, na cabeça das nossas meninas, de uma participação comunitária diferente. 

Quando eu fiz o bat mitzvah, a cerimônia foi em conjunto com mais 18 meninas. Quando fui diretora de ensino, meu trabalho era diminuir esses grupos até alcançar uma média de três meninas por cerimônia. Ou elas fazem sozinhas ou dividem com apenas duas. A mulher não vale menos do que o homem. Em muitos colégios judaicos, o bar mitzvah é individual, enquanto a cerimônia das meninas ainda é coletiva. Eles dizem que não tem tempo para todo mundo, mas essa explicação é surreal. Não tem tempo para as meninas, então elas ficam relegadas à uma cerimônia coletiva? Para os meninos tem tempo? Será que essa é a comunidade que queremos? É assim que encaramos o valor da mulher? 

Essa coisa da mulher abrir mão do seu tempo e seu espaço não cabe mais nos dias atuais. O judaísmo não é uma religião relegada ao espaço físico. Você não é judeu apenas na sinagoga. Você leva o judaísmo para as ruas. São valores constantes e diários. Então, por que tratamos o nosso comportamento religioso de maneira diferente do que a nossa participação social? 

EQL: Como você espera exercer o cargo de rabina nos próximos anos? Quais são as suas metas? 

AK: Por enquanto, eu estou aproveitando o caminho. Trabalhei no movimento reformista da UJR-AmLat, um braço regional da World Union for Progressive Judaism, e agora estou trabalhando na Associação Religiosa Israelita (ARI), a segunda maior sinagoga reformista do Brasil. Eu trabalho no púlpito de uma maneira que, para quem vê de fora, é muito similar ao trabalho de um rabino. Eu lidero serviços religiosos e ajudo na educação. Estou aprendendo e exercitando o meu trabalho pastoral como líder comunitária. 

No futuro, espero ter uma comunidade com mais mulheres no púlpito. Meu papel, hoje, é gerar espaços. Não tem uma maneira melhor de fazer isso do que sendo um exemplo. O simples fato de eu estar no púlpito já gera a noção, nas meninas, de que elas têm um lugar de pertencimento ativo. Esse é o lugar que eu quero estar. Além disso, mais do que o feminino, também quero trabalhar em outros impactos da religiosidade no Brasil. Acho que, na verdade, por motivos diversos, a sociedade brasileira hoje entende o judeu como ortodoxo. É essa imagem que vem para as pessoas. Acho que existe um trabalho muito importante para validar todas as outras correntes e formas de viver o judaísmo. E essa é uma função que eu me vejo fazendo. 

EQL: Como você explica o movimento reformista do judaísmo? 

AK: A gente pode pensar em dividir o judaísmo atual em três correntes básicas de pensamento: reformista, conservadora e ortodoxa. Diferente de outras religiões, o judaísmo não é dogmático. Ela não está nos céus, está na terra, para que você viva. A Torá, que são os ensinamentos básicos da religião, nos foi passada para que a gente continue estudando e ressignificando. 

Com o iluminismo e a abertura da sociedade para a participação das comunidades judaicas, que antigamente viviam fechadas em guetos, uma parte dos judeus começou a se abrir para mudanças, seja na forma de agir ou de se vestir. Este movimento gerou o reformismo, porque foi cada vez mais tentando se assemelhar à sociedade local. Homens e mulheres passaram a sentar juntos e instrumentos foram colocados nos serviços religiosos. 

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Naquele momento, alguns judeus acharam que era melhor puxar o freio de mão. Para eles, a situação estava fugindo do judaísmo. Essas pessoas, que voltaram a se isolar um pouco da sociedade e até a usar roupas diferentes, são os judeus ortodoxos. O tempo continuou passando e algumas mudanças foram feitas no reformismo, em especial sobre a observância de leis judaicas, em relação à comida e dias de descanso, por exemplo. 

Com isso, alguns judeus falaram: “Não quero puxar o freio de mão, quero viver neste tempo, mas também não quero mudar as leis básicas do judaísmo”. Esses são os judeus conservadores. Eles são inseridos neste tempo, mas observam a lei judaica como ela é. Já o judeu reformista estuda a lei, compreende o que está sendo dito e escolhe se quer ou não cumpri-la, de acordo com suas questões éticas e morais. De qualquer forma, todos os caminhos são válidos. 

EQL: Qual a importância da educação e da informação em um momento de crescente antissemitismo como o que vivemos atualmente? 

AK: Conhecer a comunidade judaica é muito importante. O judaísmo é apenas uma forma de se relacionar com Deus. Aliás, nosso pensamento tem muita coisa em comum com outras religiões. A questão é: o desconhecido gera medo e insegurança, então é muito importante esclarecer a religião para todas as pessoas – e não apenas a ortodoxia. As pessoas precisam saber da existência de outras correntes também. 

O crescimento do antissemitismo no mundo inteiro vem acontecendo por desconhecimento da história e da ideologia. Muitas pessoas que fazem apologia ao nazismo teriam sido mortas na Alemanha nazista. Não são caucasianos, não são arianos, não estão inseridos naquele ideal nazista. Um brasileiro defender o nazismo é absolutamente ridículo. É o medo do outro que causa isso, além de uma polarização que o mundo vem sofrendo e a gente foi se deixando levar. Talvez ela seja cíclica, mas precisamos tomar muito cuidado. 

A nossa comunidade precisa ser vista de uma forma não caricata. A história precisa ser ensinada de uma maneira clara e inclusiva, para que as pessoas entendam que 6 milhões de judeus foram mortos porque alguém acordou um dia e decidiu que eles eram responsáveis pelo mal do mundo. Eles podiam ter acordado e falado que os católicos eram responsáveis pelo mal do mundo. Não houve lógica naquilo. Mais do que isso: homossexuais, negros, ciganos e opositores ao regime também foram mortos. É uma história de sofrimento do povo judeu, mas também inclui a dor de outros.

As pessoas precisam entender isso e nós precisamos falar. Essa é a importância das rabinas e dos movimentos que pregam a inserção dos judeus na comunidade local e no tempo atual.

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