Dia da Mulher: mais que uma data para entregar flores

Desde a oficialização do Dia Internacional da Mulher, em 1975, a data vem se transformando e ganhando novos significados a partir de múltiplos pontos de vista. 
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Uma das formas de “reaprender” sobre o 8 de março é revisitando a história. Para isso, a EQL ouviu a historiadora e especialista em diversidade, inclusão e sustentabilidade, Caroline Sodré. 

Ela fez uma análise sobre as raízes do movimento feminista e os marcos importantes que moldaram a jornada das mulheres até os dias atuais.

Também ouvimos a consultora Heloisa Paula, sócia/ cofundadora da empresa de consultoria Mezcla Diversidade, que analisa o atual contexto da data dentro das empresas e explica porque entregar flores e bombons como ações corporativas já são coisas do passado.  

Dia Internacional das Mulheres: a história que precisa ser conhecida

Foi no ano de 1975 que a Organização das Nações Unidas (ONU) oficializou o dia 08 de março como Dia Internacional da Mulher. Esse marco tem suas raízes no movimento das mulheres pelo sufrágio e direitos iguais no final do século XIX e início do século XX.

No entanto, a historiadora e especialista em diversidade, inclusão e sustentabilidade, Caroline Sodré, ressalta que é preciso observar outros aspectos importantes a respeito da história que culminou na instituição da data.  

Segundo ela, o movimento feminista passou pelo que podemos chamar de três ondas na historiografia. Sendo a primeira o movimento sufragista do século XIX, muito forte na Inglaterra pós Revolução Industrial. 

A segunda, seria a chamada “Primavera dos povos”, em meados do Século XX, durante a Guerra Fria e tendo 1968 como um ano emblemático. 

E a terceira seria o momento presente, principalmente iniciado pela célebre frase “meu corpo, minhas regras” que teve seu auge em 2016”. 

Ela explica que cada onda tem sua especificidade, e portanto sua preciosidade. “Enquanto que as sufragistas exigiam o direito pelo sufrágio universal (direito de votar e serem votadas), as mulheres que marcaram a contracultura do século XX já falavam sobre aborto, liberdade sexual e falta de protagonismo nos espaços de poder. Hoje, essas discussões se amplificam e ramificam ainda mais, adicionando camadas que estão contidas no gênero, tais como: raça, orientação sexual, cisgeneridade e transgeneridade”, aponta a historiadora.  

Direitos conquistados, mas sem adaptação social

De acordo Caroline, o que começou com a introdução das máquinas e o início do modelo fabril na Inglaterra – criando a necessidade de expansão de mão de obra e assim trazendo mulheres para o mercado de trabalho – se intensificou quando o mundo foi acometido por duas Guerras Mundiais, onde as mulheres precisaram ser o alicerce da sociedade enquanto os homens estavam na guerra.

A partir desses acontecimentos, ela destaca que a história passou a ser marcada por reivindicações femininas ao direito de também ditar as regras para a sociedade se manter funcional, mas necessariamente, essa mesma sociedade não se adaptou a esse novo cenário. 

“Direitos como votar e ser votada, se alfabetizar, acessar o ensino superior, se divorciar, construir uma carreira, estar em cargos de liderança e obterem maior prestígio em suas vidas acadêmicas e profissionais são consequências de um sistema que precisou das mulheres, mas não quis se adaptar para recebê-las. Não era interessante para os homens modernos abrir mão de um poder já estabelecido para tornar a vida da mulher mais justa. O problema começa aí”, reforça a historiadora. 

Como realmente surgiu o dia 8 de março?

Conforme aponta Caroline Sodré, a historiografia vem revisitando os marcos pertencentes à instituição do Dia da Mulher. 

“Sabemos da principal teoria sobre o porquê do dia 8 de março. Supostamente surgiu de um levante feito por mulheres em uma fábrica britânica, que acabaram sendo queimadas por ousarem exigir direitos trabalhistas. Porém, esse tipo de situação era comum. Existiram milhares de levantes semelhantes pelo mundo”, conta. 

Sendo assim, atualmente, outros marcos da luta feminina são considerados nessa trajetória. 

Entre eles, ela aponta o dia 8 de março de 1917 – em que cerca de 90 mil operárias russas foram protagonistas da revolução que vinha se desenhando no país e marcharam até a sede do governo para reivindicar melhores condições de trabalho e vida. 

“Foi dessa manifestação que surgiu a frase, que posteriormente seria atribuída a Lênin na Revolução Russa: ‘pão, paz e terra’”, conta.

Dia da Mulher: uma revolta que deu errado?

A historiadora chama atenção ao fato de que na reunião de 1975, a ONU reconheceu a importância da data, mas, de acordo com ela, escolheu justificá-la de “maneira banal”. 

“‘Apenas uma revolta operária que deu errado’. Isso em si já nos diz muita coisa. A data é maior do que isso. Creditar mulheres por um feito histórico tão marcante continuava a não ser interessante para o homem setentista”, argumenta. 

Diante desses questionamentos, Caroline destaca que o reconhecimento da data não coloca um ponto final na causa. 

“Podemos dizer que aprendemos que podemos conseguir o reconhecimento por nossas lutas, mas muitas vezes, as condições impostas ainda são dominadas pela figura masculina, e por isso a luta e a conscientização devem continuar”, reforça. 

Um novo desafio a cada dia

Embora seja possível observar historicamente muitos avanços, a jornada pela igualdade de gênero está longe de terminar. 

Para Caroline Sodré, é preciso ter consciência que os desafios ainda estão presentes, embora sejam diferentes dos que foram enfrentados no passado. 

“Quando olhamos para a pandemia do COVID por exemplo, tivemos um aumento estrondoso de casos de violência doméstica e um dos fatos atrelados a isso era a convivência mais frequente entre pessoas de gênero oposto numa mesma casa. Passamos a ser vítimas dentro da nossa própria residência. Um estudo do Senado deflagrou que 3 a cada 10 mulheres no Brasil já passaram por situações de violência doméstica. Ao longo da pandemia, os casos aumentaram em 40% segundo estudo do data Folha”, ela aponta. 

A historiadora também destaca que a sociedade atual está vivendo um processo constante de maturidade e que vem lidando aos poucos com aspectos aos quais ainda é preciso avançar. 

“É importante observar que hoje, o corpo da mulher ainda é visto como posse pelo gênero oposto, e embora o letramento esteja avançado, ainda somos vistas como objeto. Há alguns anos atrás muito se falava sobre a cultura do estupro por exemplo, e assim como toda cultura, que levou séculos para se construir, também leva um tempo para se desconstruir. O que devemos focar agora é em reduzir o tempo de desconstrução, para que o futuro próximo seja ainda mais igualitário”, reforça. 

Ainda de acordo com Caroline, lacunas na representatividade feminina também devem ser destacadas. 

“Falando de Brasil, ainda somos minoria em representação política, mesmo sendo 63% da população que possui ensino superior. Somos maioria em número populacional e minoria política. Apenas 7% de nós ocupa o cargo mais alto de uma empresa, e quando olhamos para mulheres negras, somos 0,4% apenas”, observa. 

Uma história em constante construção 

Quando olhamos para marcos históricos mais recentes da história feminina como a conquista do direito a ter uma cartão de crédito, que aconteceu em 1974; o reconhecimento dos direitos iguais entre homens e mulheres pela Constituição Brasileira, em 1988; ou a criminalização da importunação sexual, em 2018, é possível sentir que estamos avançando, mas ainda em passos lentos. 

No entanto, Caroline Sodré ressalta que “do ponto de vista historiográfico, conseguimos acelerar bastante o processo de combate e desconstrução dos moldes patriarcalistas”. 

Ela adverte, porém, que o tempo histórico é diferente do tempo secular – aquele em que vivemos – principalmente em uma geração que tem a necessidade e a inquietude de tudo para ontem.

“A sociedade patriarcal faz parte de uma cultura que se desenha há séculos. Desde a perseguição de mulheres por bruxaria na Idade Média, esse modelo social vem se fortalecendo, portanto, embora já tenhamos avançado mais no último século do que nos cinco anteriores, existe essa sensação de lentidão”. 

Ela complementa ainda que a sensação de caminhar a passos lentos está mais atrelada à forma de nos relacionar com o nosso próprio tempo do que, de fato, com a morosidade do processo. 

“Se pararmos para pensar que não faz nem 200 anos em que a escravidão foi abolida, e que tivemos mais tempo em um Brasil com escravidão do que sem, conseguimos perceber melhor o efeito do tempo nessa jornada”, aponta.

Celebrar conquistas e cobrar novas pautas

Hoje as mulheres estão em todos os campos da sociedade de forma legitimada. “Somos cientistas, médicas, advogadas, empresárias, líderes de Estado e todos os outros cargos de prestígio”, ressalta a historiadora. 

Para ela, houve uma curva de avanços nos últimos 50 anos que jamais foi observada antes. “Não precisamos mais nos esconder em pseudônimos, embora homens ainda insistam em diminuir nossos feitos. Hoje, conseguimos nos emancipar de forma mais naturalizada, embora ainda olhado com estranheza em determinados recortes de raça e classe”, aponta. 

Caroline observa ainda que todos os marcos, sem exceção, devem ser lembrados e enaltecidos: desde a conquista do voto pelas mulheres, oficializado no governo de Getúlio Vargas, até a Lei Maria da Penha. 

“Avalio todos como extremamente relevantes, embora ainda busquemos melhores condições de existência. É igualmente importante celebrarmos as conquistas do que apenas cobrarmos novas reivindicações. Se apenas olharmos para o que não avançou, esse reforço de impunidade e de falta de movimento pode nos paralisar”, pondera. 

Levando em consideração esses aspectos, quais são os dados mais relevantes que podemos olhar hoje em dia? Para Caroline, é importante nos atentarmos a dados de diferentes naturezas, tanto no campo profissional, no campo racial, político, social, étnico, entre outros. 

“É de extrema relevância conseguirmos notar os diversos campos em que estamos avançando, pois todos são frutos dessa emancipação feminina através do tempo. Todas são conquistas válidas, que contribuem para essa mudança de cultura com relação às mulheres”, destaca. 

Para finalizar, ela faz um alerta às mulheres no sentido de tomar à frente na condução da escrita de sua história. “É importante ressaltar, que se faz cada vez mais importante que sejam as próprias mulheres que proponham novas ações, pois a grande maioria das leis que nos favorecem foram redigidas por homens, simplesmente por eles terem a caneta na mão”, observa. 

Não queremos flores 

O Dia Internacional das Mulheres é uma data que, embora celebrada há décadas, ainda encontra desafios em sua abordagem nas empresas. 

Enquanto algumas organizações estão avançando para iniciativas mais substanciais que promovem a equidade de gênero, outras ainda estão presas a gestos simbólicos, que pouco contribuem para a mudança real.

“Algumas empresas ainda não estão conscientizadas sobre a importância desta data, então acabam fazendo ações rasas, com flores, chocolates ou brindes que reforçam estereótipos. Contudo, aquelas mais avançadas na pauta têm promovido discussões profundas, rodas de conversa e iniciativas que impactam diretamente a cultura e as práticas do dia a dia da empresa, visando a melhoria da equidade no ambiente de trabalho”, destaca Heloisa Paula, sócia/ cofundadora da empresa de consultoria Mezcla Diversidade. 

Revendo as ações 

No entanto, segundo Heloísa, embora o cenário ainda pareça difuso, a cada ano, percebe-se uma evolução na abordagem da data por parte das empresas. 

“Aquelas que tinham menos conhecimento sobre equidade de gênero estão gradualmente aderindo a celebrações mais robustas, especialmente aquelas que possuem grupos de diversidade. Por outro lado, empresas mais conscientes podem enfrentar uma sensação de fadiga, questionando a necessidade contínua de abordar o assunto, apesar do conhecimento prévio de muitos funcionários”, pondera a consultora.

E neste cenário em transformação, Heloísa reitera que as organizações podem adotar diversas ações para trabalhar a data de forma mais efetiva nos dias de hoje. 

“Além de comunicação interna, palestras e rodas de conversa, é essencial rever os benefícios oferecidos a todas as pessoas que trabalham na empresa, como auxílio-creche, licenças parentais e cuidados com a saúde mental. Outra boa ideia é investigar e combater vieses inconscientes que possam prejudicar a entrada e a ascensão de mulheres dentro da organização”, ressalta.

Sobre o que falar no Dia das Mulheres

Quanto às pautas mais relevantes a serem abordadas nas corporações de forma urgente, Heloísa destaca que há uma variedade de temas importantes.

Entre eles, ela cita a equidade salarial, combate ao assédio moral e sexual, saúde mental das mulheres, representatividade feminina em cargos de liderança, interseccionalidade e ações de engajamento dos homens como aliados na busca pela equidade de gênero.

“Em setembro de 2023, a ONU disse que a igualdade de gênero avança a passos lentos e que as metas propostas para 2030 são quase impossíveis de alcançar. Isso se deve aos vieses contra mulheres que afetam sua saúde, educação, emprego e acesso a esferas de poder. Embora o mundo do trabalho não possa resolver todas essas questões, ele tem papel preponderante no acesso a recursos para que as mulheres possam avançar”, reforça.

Por fim, a consultora destaca a importância do papel dos homens como aliados na busca pela equidade de gênero, ao abandonar práticas discriminatórias e contribuir para a construção de um ambiente de trabalho mais inclusivo e justo para todos.

“Os homens podem e devem apoiar as mulheres na equidade de gênero. Mas o primeiro passo é não ‘dar parabéns’ e, sim, vir lutar ao nosso lado”, finaliza. 

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