Quem é a empreendedora que saiu de uma aldeia do Líbano para democratizar o acesso à tecnologia no setor de saúde do Brasil

De origem árabe, Jihan Zoghbi é a fundadora da healthtech Dr. TIS, uma plataforma de telemedicina que oferece diagnósticos mais precisos
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Aos 16 anos, Jihan Zoghbi ganhou uma bolsa de estudos integral na Universidade Americana de Beirute, no Líbano, referência no Oriente Médio (Foto: Divulgação)

Na casa onde a empreendedora libanesa Jihan Zoghbi nasceu, todos concordavam com o mesmo lema: não ter medo do desconhecido. Desde pequenos, os sete irmãos aprenderam que a vida – vira e mexe – os levaria por caminhos inusitados, e que era preciso lidar com isso da melhor forma possível. Quando Jihan tinha apenas três anos e meio, por exemplo, seus pais decidiram migrar para a Colômbia em busca de melhores condições de vida. Alguns parentes já moravam no país e recomendavam as oportunidades do comércio local. Essa foi a primeira vez que as crianças enfrentaram cenários desconhecidos. 

“A cidade tinha um comércio muito bom, mas a qualidade de vida era péssima. Tinha ruas de terra, ratos e baratas. Era ruim, mas era uma oportunidade de ganhar dinheiro”, lembra ela. “Meu pai ia ao Panamá comprar coisas para revender, minha mãe cuidava da loja e eu e meus irmãos ficávamos em casa. Ela trancava tudo, fechava o gás e falava para darmos mamadeira para a minha irmã mais nova, a Fátima, caso ela chorasse. Era uma grande responsabilidade, mas a gente se divertia. Eu costumava jogar água com detergente no chão da cozinha para ficar escorregando de um lado para o outro. Essas memórias são inesquecíveis.” 

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Quando voltaram para o Líbano, quatro anos depois, Jihan e os irmãos eram fluentes em espanhol, tinham uma boa educação e estavam preparados para o mundo no que diz respeito à responsabilidade. Seu país natal, no entanto, não havia evoluído muito nos quatro anos em que a família ficou longe. A Guerra do Líbano estava consumindo a região, com grandes sequelas para a sociedade local. “Meu pai tinha juntado um bom dinheiro como comerciante. Quando voltamos para a nossa aldeia, ele abriu um posto de gasolina. Já eu e meus irmãos fomos estudar”, conta. Havia apenas um pequeno problema nessa estrutura. 

Um dos efeitos colaterais do conflito armado era o fato de que os homens jovens eram obrigados a ir para a guerrilha, enquanto as mulheres ficavam em casa. A família de Jihan não se enxergava seguindo essa tradição. “Meu pai mandou os meus irmãos para o exterior, assim eles não precisariam lutar. Eu continuei lá, mas decidi que nunca deixaria de estudar.” De inteligência ímpar, Jihan sempre se destacou na escola, tendo aprendido a ler com apenas três anos – além de “pular” alguns anos escolares por estar avançada demais para a sua idade. Apaixonada por matemática e ciências, matérias raramente ligadas ao feminino, ela logo começou a prestar vestibulares, sonhando com um futuro na área de exatas. 

Aos 16 anos, ganhou uma bolsa de estudos integral na Universidade Americana de Beirute, no Líbano, referência no Oriente Médio. Ali, tentou agradar os pais e cursar medicina, mas logo os números a chamaram novamente, convencendo-a a cursar matemática. “Minha mãe sonhava muito que eu fosse médica. Quando troquei de curso, ela ficou três meses sem falar comigo”, lembra Jihan, rindo.  “Mas logo passou. Eles sempre me apoiaram ao máximo e tiveram orgulho da minha trajetória. Meus pais estudaram só até a quarta série. Minha mãe casou aos 15 anos. Minha formação foi motivo de grande alegria.” 

Assim como a experiência de se mudar para a Colômbia, um país completamente diferente do Líbano, ser uma das únicas mulheres cursando matemática em uma faculdade de referência do seu país era um ato digno de quem não tem medo do desconhecido. Em pouco tempo de estudo, Jihan já estava dando aulas para complementar a renda, até que um novo desafio surgiu em sua vida. No final da graduação, ela conheceu o seu futuro marido – um médico brasileiro que estava passeando por Beirute. Logo, sua vida mudou por completo mais uma vez: ela se casou e mudou para o Brasil. Tudo isso sem saber o básico do português. 

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Hoje, os irmãos de Jihan, espalhados pelo mundo, também acompanham sua trajetória e se orgulham de seus passos (Foto: Divulgação)

A OUSADIA DE NÃO DESISTIR 

“Eu queria continuar meus estudos, mas não sabia nada do idioma local. O Brasil era uma realidade completamente diferente daquela que eu conhecia, mas não desisti. Comecei a assistir todas as novelas que passavam na televisão. De “Vale a Pena Ver de Novo” à novela das 21h”, conta, entre risadas. “Eu fiquei três meses assistindo novela e estudando, até que decidi fazer o vestibular. Nem meu marido achou que eu ia passar.” Contrariando a lógica, Jihan foi aprovada na primeira lista de chamada do curso de ciência da computação no Mackenzie, em São Paulo. “No início, as pessoas tinham preconceito, mas quando eu comecei a tirar notas boas, todos ficavam ao meu redor para que eu ajudasse nas matérias.” 

Com o diploma em mãos, Jihan conseguiu bons empregos como analista de sistemas em empresas de renome. No jornal “O Estado de S. Paulo”, por exemplo,  foi responsável pela criação do portal. Após alguns anos, no entanto, decidiu que era hora de seguir outro caminho. Grávida pela terceira vez, ela acreditava que, em sua rotina, não havia equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. Era preciso desacelerar – embora o seu conceito de “diminuir o ritmo” seja um tanto quanto peculiar. Sem precisar bater cartão como funcionária fixa, ela começou a prestar pequenas consultorias e iniciou um mestrado em computação na Universidade de São Paulo (USP). 

Durante a especialização, aproximou-se de alguns projetos de computação voltados à medicina. No meio do processo, chegou a criar um algoritmo para segmentar tumores cerebrais – inspirada em um de seus irmãos, que morreu de câncer aos 35 anos. “Trabalhei com diversas classificações de imagens médicas, fazendo com que a tecnologia ajudasse nos diagnósticos. No terceiro ano do doutorado, realmente comecei a trabalhar na área da saúde, desenvolvendo tecnologia para diversas empresas.” Mergulhada no setor, Jihan percebeu um grande problema, que clamava por solução: havia muitos softwares para a área, mas nenhum realmente acessível. 

NASCE UMA EMPREENDEDORA 

“Hospitais de grande porte compram a tecnologia, mas e os pequenos?”, questionou ela, na época. A partir desse incômodo, a ideia de criar um sistema que todos pudessem usufruir foi ganhando força. No início de 2018, Jihan desenvolveu a Dr. TIS, uma startup que operava apenas como plataforma de telerradiologia, com armazenamento de imagens médicas na nuvem (raio-x, tomografia e ressonância magnética, entre outras). Inicialmente, o sistema foi testado na área veterinária, sendo aplicado na medicina humana apenas um ano depois, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou o serviço. 

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Durante a pandemia de Covid-19, com o impulsionamento da telemedicina, a plataforma também começou a possibilitar o compartilhamento online dos exames. Ou seja, especialistas podem analisar as imagens e fazer laudos à distância, encaminhando diretamente ao paciente e ao médico responsável. De forma resumida, a ferramenta se torna uma aliada na busca por diagnósticos e tratamentos mais precisos. 

Além disso, com a regulamentação da telemedicina no período chamado de “Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional”, a startup passou a oferecer o serviço de consultas remotas por vídeo – usando criptografia de ponta a ponta de acordo com as normas da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Nesse período, Jihan viu o faturamento da empresa crescer 500%.

Hoje, são mais de 250 clientes em 20 estados. Entre eles, redes como HCor, Instituto de Responsabilidade Social do Sírio Libanês, Rede Mater Dei de Saúde, Hospital Moinhos de Vento e Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. “Agora, nosso objetivo é escalar o negócio para o Brasil como um todo”, diz a empreendedora, que sonha em democratizar o acesso à tecnologia. 

Presidente da Associação Brasileira CIO Saúde (ABCIS), que tem como foco a transformação digital para melhoria do setor de saúde em todo o território brasileiro, Jihan fez dessa a sua meta após reconhecer o Brasil como seu lar oficial – e enxergar todos os problemas que esse lar enfrentava. “Eu vi uma área carente que precisava de ajuda. Não fiz medicina, mas meu caminho acabou sendo direcionado para a saúde. Minha mãe, claro, ficou muito feliz”, brinca. 

O pai de Jihan já faleceu, mas seus irmãos, espalhados pelo mundo, também acompanham sua trajetória e se orgulham de seus passos. “Eles sabem que eu quebrei um tabu, e isso tem tudo a ver com a minha criação. Falhar não era uma opção. Para nenhum de nós”, conclui.

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