Pioneira do naturismo no Brasil, Luz del Fuego desafiou a sociedade da década de 1940

Dora Vivacqua, nome verdadeiro da artista, lutou pela liberdade sexual feminina, foi adestradora de cobras e criou o primeiro clube de nudismo no país
JOB_03_REDES_SOCIAIS_EQL_AVATARES_QUADRADOS_PERFIL_v1-02
Luz del Fuego
Dora Vivacqua foi pioneira do naturismo no Brasil, um símbolo da liberdade sexual feminina, dançarina, artesão e até adestradora de cobras (Foto: Reprodução)

Ela foi a pioneira do naturismo no Brasil, um símbolo e um mártir da liberdade sexual feminina. Foi também dançarina – não das melhores, é verdade -, artesã e até adestradora de cobras. Luz del Fuego nasceu Dora Vivacqua, em 21 de fevereiro de 1917, em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo. Desde a infância, já se mostrava uma mulher diferente – algo que costumava assustar as pessoas, fazendo com que muitas delas a considerassem louca, adjetivo frequentemente usado para classificar mulheres que buscavam seu espaço.

Apesar disso, Dora não se deixou abalar: lutou bravamente para viver livre e para que outras mulheres pudessem fazer o mesmo. Do dia em que nasceu até o momento de sua morte, aos 50 anos, Luz del Fuego deu o que falar na sociedade da época no Rio de Janeiro, para onde se mudou – ou melhor, fugiu – aos 21 anos. 

Conheça a plataforma de educação financeira e emocional EQL Educar. Assine já!

Dora foi uma personagem tão marcante que ganhou até música. “Luz del Fuego”, de Rita Lee, descreve: “eu hoje represento a loucura […]/ eu hoje represento o segredo […]/ eu hoje represento uma fruta […]/ eu hoje represento o folclore […]/ eu hoje represento a cigarra […]/ eu hoje represento a pergunta”. Dora foi tudo isso. 

Para celebrar seu nascimento, relembramos a história da vedete que perturbou políticos, a sociedade e a imprensa nas décadas de 1940 e 1950:

“Eu hoje represento a loucura”

Luz del Fuego
Luz del Fuego odiava sutiãs e no Carnaval, suas fantasias, confeccionadas por ela, eram mínimas e transparentes (Foto: Domínio Público)

Curiosamente, Dora nasceu em uma segunda-feira de carnaval. Décima quinta filha de Antônio e Etelvina, foi uma criança já fora da curva, principalmente no meio de uma família tradicionalíssima de políticos, empresários e intelectuais do interior do Espírito Santo. Ela brincava com bichos no mato, zombava das irmãs e provocava os meninos. 

Em 1930, Dora foi morar com Angélica, uma de suas irmãs. Na nova residência, era regularmente assediada pelo cunhado, até que, pré-adolescente, acabou cedendo. Quando flagrados juntos, a culpa, claro, recaiu sobre a menina de 13 anos.

Psiquiatras, então, somaram sua rebeldia ao “relacionamento” quase incestuoso e Dora foi diagnosticada com esquizofrenia. Por isso, passou dois meses internada no Hospital Psiquiátrico Raul Soares, em Belo Horizonte. Quando recebeu alta, Achilles, um de seus irmãos, a convenceu a passar um tempo na fazenda de Archiau, outro irmão. Lá, ela conquistou um pouco mais de liberdade, até que decidiu surpreender o filho do administrador da fazenda vestida de Eva – três folhas de parreira e duas cobras-cipós como braceletes.

O irmão não gostou nada da atitude, e a jovem foi internada novamente, desta vez na Casa de Saúde Dr. Eiras, no Rio de Janeiro. Achilles, mais uma vez, interveio, e Mariquinhas, uma das irmãs, levou Dora para morar com ela. A estadia, no entanto, durou pouco. Dois meses depois, ela fugiu, aos 21 anos, para morar sozinha na capital carioca.

“Eu hoje represento o folclore”

Luz del Fuego
Dora fez da nudez um estilo de vida e um ato político (Foto: Reprodução)

Foi morando na cidade maravilhosa que Dora se sentiu livre como sempre havia desejado. Ela, que odiava os sutiãs, ia para a praia apenas de calcinha e um top feito de lenços. Tudo isso muito antes da invenção do biquíni, que só seria apresentado ao mundo em meados dos anos 1940. 

LEIA MAIS: Conheça as mulheres que participaram da Semana de Arte Moderna de 1922

No Rio, ela engatou um romance com José Mariano, filho do arquiteto de mesmo nome e playboy na década de 1930. Assim como Dora, ele adorava uma aventura – menos quando a amada estava envolvida. Quando a moça quis fazer paraquedismo, ele a proibiu. Quando decidiu que queria ter aulas de dança e estudar, a situação piorou a ponto de envolver violência. Esse foi o estopim para o fim do relacionamento, que, na verdade, nem chegou a ser oficializado. 

Dora, claro, não se deu por vencida. Decidiu se destacar, não pelo gingado propriamente dito, mas por conta de um adereço um tanto quanto inusitado: cobras. A inspiração veio de um livro, que trazia imagens de sacerdotisas da Macedônia envoltas no animal. Assim, Dora comprou jiboias e ensaiou com elas por quase um ano, preparando-se para os shows.  

A fama, então, veio em 1944, quando ela se tornou a atração principal de um circo. Com o espetáculo “Luz Divina e suas Incríveis Serpentes”, Dora se apresentava praticamente nua, apenas na companhia de Cornélio e Castorina, as duas cobras – algo que acabou se transformando em sua marca registrada. Assim, ela se tornou a primeira mulher a se apresentar sem roupa – e foi presa. Não demorou muito para que a ficha criminal de Dora fosse ganhando novos capítulos, sempre por crimes contra a moral e os bons costumes.

“Eu hoje represento a cigarra”

Luz del Fuego
Luz del Fuego foi, além de tudo, ecologista e uma amante da natureza (Foto: Domínio Público)

Conforme ia acumulando escândalos, Dora percebeu que “Luz Divina” não era um nome forte o suficiente. Por isso, adotou “Luz del Fuego”, como tinha sido batizado um batom argentino recém-lançado.

Seu nome, sua fama, e seu espetáculo com as cobras salvaram diversos circos da falência até que Luz del Fuego foi, finalmente, contratada pelos proprietários do Follies, um pequeno teatro em Copacabana. O show “Mulher de Todo Mundo” foi parar nos jornais, aproximando a artista do auge de sua carreira.

Aos 30 anos, Luz del Fuego sentiu que era hora de usar sua fama para abordar outras questões, e se tornou a primeira apóstola do naturismo no Brasil. Assim, a nudez, responsável pela alcunha de louca e, depois, pelo sucesso, passou a ser estilo de vida e ato político. No fim da década de 1940, ela se dedicou à teorização do movimento naturista brasileiro –  uma filosofia de vida que acredita em valores de igualdade, respeito, contato com a natureza e amor ao próximo.

Ao atuar em defesa do divórcio, da mulher e do nudismo, Luz del Fuego logo fundou o Partido Naturalista Brasileiro (PNB). Com a iniciativa, ela pretendia se lançar candidata à deputada federal, mas seu partido não obteve registro.

OLHA SÓ: Uma chinesa no Brasil: como Si Liao transformou um canal do YouTube na edtech do maior curso de mandarim do país

Mais uma vez ela não desistiu. Em 1950, Luz del Fuego usou sua influência e pediu ao então ministro da Marinha, Renato Guillobel, a concessão de uma ilha para criar um clube de nudismo. Assim, a ilha Tapuama de Dentro, na Baía da Guanabara, foi concedida à artista e se transformou na Ilha do Sol. Apesar de não estar na rota turística do Rio de Janeiro, o local foi visitado por grandes nomes de Hollywood, como Lana Turner, Ava Gardner, Tyrone Power, Brigitte Bardot e Steve McQueen.

“Eu hoje represento a pergunta”

Luz del Fuego
Podiam a chamar de louca, mas ela era apenas livre (Foto: Reprodução)

O fim do governo de Juscelino Kubitschek e do otimismo da Quarta República, época em que Luz del Fuego pôde florescer, deram espaço a uma paranoia anticomunista. Assim, a partir dos anos 1960, o clube de nudismo passou a dar sinais de decadência e, em 1967, teve suas atividades interrompidas. Ainda assim, ela não se desapegou: continuou morando no local na companhia do seu caseiro e vigia, Edgar.

O fim trágico de Luz del Fuego, ironicamente, não teve nada a ver com seu lado “rebelde”, mas sim com seu amor pela natureza. Ela havia denunciado à polícia que pescadores estavam agindo com explosivos nos arredores da ilha onde morava, técnica que provocava uma grande mortandade de peixes. Nenhuma autoridade lhe deu ouvidos, afinal, era uma mulher da vida, provocadora.

Os acusados, no entanto, levaram a atitude de Luz del Fuego muito a sério. No dia 19 de julho de 1967, os irmãos Alfredo e Mozart Teixeira Dias desceram na ilha e foram recebidos pela artista. Os intrusos disseram a ela que seu barco estava sendo roubado e a convenceram a acompanhá-los em sua própria embarcação. A bordo, a apenas alguns metros da costa, Luz del Fuego levou uma pancada na cabeça, foi aberta à faca, como um peixe, amarrada numa pedra e descartada no mar. Edgar, o caseiro, teve o mesmo fim.

Mais tarde, um deles confessou o crime e ambos acabaram presos. Hoje, é possível visitar as ruínas da casa de Luz del Fuego, e lá relembrar a história da mulher que passou a vida lutando pela liberdade feminina e contra a moralidade. A máxima “meu corpo, minhas regras” nunca fez tanto sentido.

Fique por dentro de todas as novidades da EQL

Assine a EQL News e tenha acesso à newsletter da mulher independente emocional e financeiramente

Baixe gratuitamente a Planilha de Gastos Conscientes

Compartilhar a matéria:

×