Conheça o movimento Quem ama não mata, referência na luta contra a violência à mulher

Quase 41 anos depois da criação da iniciativa, as mulheres envolvidas continuam o trabalho para diminuir e acabar com o feminicídio no Brasil
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Mirian Chrystus é a atual coordenadora do movimento Quem ama não mata. (Foto: Reprodução/Facebook)

Em 2015, o Brasil alterou o Código Penal Brasileiro e incluiu a Lei 13.104, que tipifica o feminicídio como homicídio, reconhecendo o assassinato de mulheres por serem apenas mulheres. Antes, a grande quantidade de crimes cometidos por questões de gênero eram contabilizados como qualquer outra violência. 

Na época, o avanço da lei foi muito celebrada pela jornalista Mirian Chrystus, 70. Ela e outras mulheres sempre estiveram envolvidas em pautas sobre a violência contra a mulher, desde a década de 1980, quando fundaram em Belo Horizonte, Minas Gerais, um movimento considerado referência por movimentos feministas até os dias de hoje, o Quem Ama Não Mata.

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O primeiro ato do Quem Ama Não Mata

Foto: Reprodução/Diário da Tarde

A morte de Heloísa Ballesteros e Maria Regina Souza Rocha, duas mulheres de classe média alta de BH assassinadas pelos maridos, deram origem a um ato público, que reuniu cerca de 400 mulheres na escadaria da Igreja São José, região central da cidade.

Era agosto de 1980 e o Brasil ainda estava em uma ditadura militar. Diferente de hoje, os atos públicos e protestos nas ruas eram mais provocativos e chamavam mais atenção da sociedade e dos governos. 

Em entrevista ao Elas que Lucrem, Mirian lembra que os assassinatos chocaram a sociedade mineira na época. “Eram duas mulheres mortas em um período de tempo muito curto, menos de 20 dias. Eram outros tempos. Atualmente, tem dias que os jornais noticiam várias mortes de mulheres em um único dia. Hoje, um ato publico é muito banalizado, mas naquela época, durante a ditadura, era algo muito original. Então, nos reunimos na frente de uma igreja, no dia 18 de agosto de 1980, com a estratégia de ser lá, justamente porque se falava muito de que as pessoas quando casavam não podiam mais se separar”, conta a jornalista e professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

No dia do evento, discursaram Helena Grecco, do Movimento Feminino pela Anistia, a poeta Adélia Prado e outras feministas que vieram do Rio de Janeiro.

Foi naquele ato, nas escadarias da igreja, que nasceu o movimento Quem Ama Não Mata (QANM). “Cobraram de nós, jornalistas, que outras mulheres pobres eram assassinadas todos os dias nas favelas e não se fazia nada. Nós sabíamos, éramos jornalistas. Mas a gente entendia que duas mulheres de classe média e alta assassinadas davam uma boa pauta, pelos critérios de noticiabilidade dos jornais. A gente queria chamar a atenção para o assunto. Não éramos ingênuas. O ato que ficou conhecido como Quem Ama Não Mata, frase anônima que estava pichada em um muro de um dos colégios mais tradicionais de BH”, acrescenta.

Depois do ato, as mulheres também fundaram o o Centro de Defesa da Mulher, que iniciou pesquisa sobre o tema “violência contra a mulher” e promoveu o atendimento de mulheres que sofriam violência doméstica na cidade.

Elas seguiram reivindicando a criação de delegacias especializadas no atendimento de mulheres, que só foram criadas a partir de 1985, sendo a primeira no estado de São Paulo.

Em 2018, dados do IBGE mostraram que só 8,3% do municípios brasileiros tinham delegacias especializadas de atendimento à mulher e apenas 9,7% das cidades ofereciam serviços especializados de atendimento à violência sexual.

O início do movimento

Mas, antes do ato na escadaria, Mirian e suas colegas de faculdade já pesquisavam o feminismo, embora o assunto ainda fosse pouco conhecido. Ela lembra que dentro dos movimentos políticos que participava, não havia a discussão sobre os direitos da mulher. 

Foi quando decidiu ir ao Rio de Janeiro, em 1975, para participar de um seminário sobre os direitos da mulher e conheceu a escritora Branca Moreira Alves, uma referência do feminismo.

“Tinha 24 anos, era jornalista e estava conhecendo mais sobre o assunto. Com a referência do que aprendemos por lá, também decidimos realizar um seminário sobre a questão da mulher, em Belo Horizonte, no Diretório Central dos Estudantes da UFMG. Foi uma boa decisão, debatemos durante três dias no nosso evento e logo depois criamos um grupo com algumas mulheres envolvidas. A gente se reunia aos sábados e lia sobre o assunto. Pouco depois, nos tornamos referência em BH e sempre nos procuravam quando precisavam de alguém que entendesse [sobre o assunto]. Dávamos entrevistas, escrevíamos artigos e reportagens numa perspectiva crítica”, lembra. Depois de um período, cada integrante do grupo, decidiu seguir a vida e se dedicar a outras atividades.

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Mas, apesar da distância, elas continuavam inquietas com o aumento da violência contra a mulher, principalmente com um outro caso marcante para a sociedade mineira, o da morte de Ângela Diniz, pelo companheiro Doca Street, em 1976.

No primeiro julgamento do caso, em 1979, em Cabo Frio, no Rio de Janeiro, ele alegou que havia sido vítima de Ângela Diniz e que tinha agido em legítima defesa ao atirar nela. Na época, foi condenado a apenas dois anos de prisão e a sentença foi anulada por ele ser réu primário.

Porém, por causa dos protestos de várias mulheres pela pena baixa, um segundo julgamento ocorreu em 1981. Dessa vez, Doca foi condenado a uma pena de 15 anos de prisão pelo crime, mais seis meses por ter fugido da Justiça. 

“Eu digo que nesse intervalo de tempo, entre o primeiro e o segundo julgamento, o Brasil passou a conhecer o que era o direito da mulher e o feminismo”, lembra Mirian, que é a atual coordenadora do Quem Ama Não Mata.

Novo ato púbico em 2018

Organizadoras do evento se reuniram novamente nas escadarias da igreja São José, lembrando o marcante ato de 1980. (Foto: Reprodução/Facebook)

38 anos se passaram para a realização de um novo ato público. O motivo? O mesmo. O alto índice de violência contra a mulher no Brasil. Em 2018, no dia 9 de novembro, o grupo se reuniu novamente na Igreja São José, em BH. Dessa vez, o movimento estava mais plural e tinha outras vozes da sociedade, como representações das profissionais de sexo, das trabalhadoras rurais, das negras, LGBTQIA+, das trans etc.

“A reedição do movimento aconteceu em grande parte por causa do assassinato brutal de Tatiane Spitzner. Vimos aquelas imagens dela sendo agredida no carro, no estacionamento e, principalmente, no elevador. A partir de conversas no Facebook, resolvemos fazer algo forte e contundente: reeditar o Quem ama não mata”, conta Mirian.

Prestes a completar 41 anos de existência, no próximo dia 18 de agosto, o QANM continua ativo, com cerca de 15 integrantes, muitas das quais participaram da sua fundação.

Mas, apesar de todo trabalho feito ao longo dos anos, os números pioraram.

Uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos afirma ter sofrido algum tipo de violência no último ano no Brasil, durante a pandemia de Covid-19, segundo pesquisa do Instituto Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Ou seja, cerca de 17 milhões de mulheres (24,4%) sofreram violência física, psicológica ou sexual no último ano. Na comparação com os dados da última pesquisa, há aumento do número de agressões dentro de casa, que passaram de 42% para 48,8%. 

Para Mirian, o crescimento do feminicídio é uma resposta aos avanços conquistados pelas mulheres brasileiras ao longo dos anos. “Os homens não esta preparados para isso, inclusive de entender que mulher pode se separar dele se essa for a sua vontade. Já existem pesquisas que relacionam muitas vezes os assassinatos cometidos com o tempo que a mulher anuncia que quer se divorciar. Cerca de 3 meses depois que elas manifestam esse interesse, muitas são assassinadas”, detalha a coordenadora do movimento.

Depois do novo ato público, o movimento ganhou um novo fôlego. Hoje, as reuniões estão sendo remotas por causa da pandemia. Elas realizam seminários, exposições e palestras, geralmente com o foco mais cultural.

No próximo sábado, o grupo vai conversar pela primeira vez com homens. “É a primeira vez que vamos conversar só com o público masculino. Nos anos 1970, a gente citava Simone de Beauvoir, com a frase famosa de que não se nasce mulher, se torna. Só que a gente esquecia que também não se nasce homem, se torna. Do mesmo jeito que ensinam a ser mulher na sociedade machista, também fazem o mesmo com os homens. São valores ensinados de que o homem é o provedor da casa, é o dono da mulher. É nessas palestras que tentamos desconstruir essa ideia da posse, a gente não pode esquecer da ponta do problema.”

Onde encontrar ajuda?

Lei Maria da Penha diz que o Poder Público deve desenvolver políticas que garantam condições para que as mulheres possam superar a situação de violência doméstica e familiar.

A Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180 presta uma escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes.

As delegacias especializadas são uma das mais importantes portas de entrada das denúncias de agressão. Eles são responsáveis pelo registro de boletins de ocorrência, investigação de crimes praticados contra as mulheres e encaminhamento de solicitação de medidas protetivas.

No caso de emergências, quando não há uma delegacia especializada para esse atendimento, a vítima pode procurar uma delegacia comum, onde deverá ter prioridade no atendimento. Ou pode pedir ajuda por meio do telefone 190.

As mulheres também podem procurar a Defensoria Pública do seu estado. É uma instituição que presta assistência jurídica gratuita às pessoas que não podem pagar um advogado.

Na Casa da Mulher Brasileira, aberta 24 horas, mulheres de todo o Brasil podem ser atendidas e até receber alojamento por 48 horas.

Há também os Centros Especializados de Atendimento À Mulher (CEAM), que ofertam o acolhimento e acompanhamento interdisciplinar (social, psicológico, pedagógico e de orientação jurídica) às mulheres em situação de violência.

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