“Me sinto uma prisioneira do Talibã e minha vida está em perigo”, diz única guia turística mulher do Afeganistão

Fatima Haidari vive em Herat, terceira maior cidade do país, tomada pelo grupo extremista no último dia 12 de agosto após a retirada do exército dos Estados Unidos
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Fatima Haidari, uma jovem afegã de 22 anos. (Foto: Cortesia)

“Estou vivendo como uma prisioneira, mesmo dentro de casa não me sinto segura. Quero fazer muitas coisas, assim como antes. Mas para isso, preciso estar viva e para continuar viva, tenho que sair daqui. Estou tentando, mas ainda não sei. Tudo parece um pesadelo, tenho muito medo de ser morta pelo Talibã, minha vida está em perigo.”

Esse é o relato de Fatima Haidari, uma jovem afegã de 22 anos. Por telefone, ela diz viver o pior momento de sua vida desde que Herat, terceira maior cidade do Afeganistão, foi tomada pelo Talibã, no último dia 12 de agosto, após a retirada do exército dos Estados Unidos.

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Antes da vida virar de ponta cabeça, Fatima estava no segundo ano do curso de jornalismo, na Universidade de Herat, a cerca de 800 quilômetros da capital Cabul, e trabalhava com turismo e projetos sociais. Ela diz ser a primeira e única guia turística mulher do Afeganistão.

“Quando o Talibã tomou Herat, eu tive que fugir para Cabul, mas eles também entraram aqui. Acho que, em geral, não há tantos problemas para os homens, só aqueles que trabalhavam para organizações do governo, esses estão dentro de casa com medo de retaliações. O grande problema é a realidade das mulheres. Elas precisam sentar em casa e esperar. Se for sair, só com burca ou niqab e acompanhada dos maridos. Os escritórios governamentais foram invadidos e não há espaço para mulheres”, lamenta a afegã.

O Talibã tomou o controle de quase todo o Afeganistão, incluindo Cabul, 20 anos após terem sido expulsos pelas forças ocidentais lideradas pelos Estados Unidos.

O termo “Talibã” significa “estudantes” em pashto, uma das línguas faladas no país. O grupo foi criado em 1994 por ex-guerrilheiros conhecidos como mujahidin, inclusive com o apoio dos EUA. Um dos objetivos era impor uma lei islâmica, só que com a própria interpretação.

Com a chegada do grupo ao poder, o mundo todo assistiu às cenas de protestos, tentativa de fuga do país e mulheres muito preocupadas.

Um porta-voz do grupo extremista afirmou na terça-feira (17), que se compromete a honrar os direitos das mulheres, desde que dentro das normas da lei islâmica. Zabihullah Mujahid anunciou que elas poderão trabalhar. “Vamos esperar a formação do governo e os decretos de lei, e então podemos ver como serão as leis e regulamentações”, disse.

Membro do Talibã vigia um posto de controle em Cabul, no Afeganistão. (Foto: Stringer via Reuters)

Em entrevista à Elas que Lucrem, a cientista social Karime Ahmad, pesquisadora do Oriente Médio, explica que ainda é muito difícil traçar os próximos acontecimentos ou o que ocorrerá com a população afegã, especificamente as mulheres, já que o Talibã de hoje pode não ser o mesmo dos anos 1990 e 2000. “As mulheres estão preocupadas com a manutenção dos seus direitos básicos e o grupo diz que deve mantê-los dentro das normas da lei islâmica. Mas no que consiste essa estrutura do Islã que o Talibã tem falado? O grupo possui uma interpretação singular da religião e, historicamente, a instrumentalizou para fins políticos. Hoje temos mais perguntas do que respostas.”

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Fatima Haidari tem razão em temer pela vida e pelos direitos das mulheres, principalmente na autorização para trabalhar e estudar no país. Isso porque, no período de 1996 a 2001, quando o grupo governou o país, as afegãs eram proibidas de trabalhar fora de suas casas, de estudar e só podiam sair de casa acompanhadas pelo marido e usando burcas, com o corpo totalmente coberto.

A situação só mudou depois da invasão norte-americana, que acusou o país de proteger o grupo Al-Qaeda, de Osama Bin Laden, mentor dos ataques do 11 de setembro.

Ela aprendeu a ler e escrever na areia enquanto pastoreava ovelhas

Fatima nasceu na província rural de Ghor, uma das regiões mais pobres do Afeganistão.

A afegã conta que, na época, era proibido que mulheres estudassem na cidade onde morava, algo comum no interior do país, diferente dos principais centros urbanos onde a prática foi autorizada com a saída do Talibã em 2001. 

“Eu não tinha direito de estudar. Só existia uma escola, que não era bem uma escola, era mais um espaço ao lado do rio onde só homens podiam frequentar”, lembra. 

A jovem conta que sempre observava os meninos estudarem porque era pastora de ovelhas na mesma região. “Eu levava os animais para perto do rio e enquanto eles comiam capim, eu ficava escondida ouvindo os professores e escrevendo na areia com um pedaço de pau. E foi assim que aprendi a ler e escrever, eu tinha dez anos.” 

Pouco tempo depois, ela e a família se mudaram para Herat. A jovem é a filha mais nova e tem outros seis irmãos. As condições financeiras não eram as melhores, a mãe e o pai dela passavam por muitas dificuldades e, embora na nova cidade já fosse permitido que ela frequentasse uma escola, a família não tinha dinheiro para matriculá-la. 

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Ela começou a fazer alguns artesanatos e a mãe era a responsável por vendê-los. Com o dinheiro arrecadado, conseguiu comprar alguns livros e continuar estudando dentro de casa. 

“Continuei fazendo artesanatos por alguns anos e consegui entrar em uma escola particular. Nesse tempo, também comecei a estudar inglês em uma organização sem fins lucrativos que oferecia o curso de forma gratuita para refugiados, tive sorte.”

Ela se dedica para que o acesso à educação não seja um privilégio só dela. (Foto: Cortesia)

Depois de dois anos como aluna, Fatima se tornou professora assistente do projeto. Eles pagavam US$ 50 por mês e isso possibilitou a sua continuidade em uma escola privada. 

“Ninguém na minha família sabe ler ou escrever. Eles nunca foram à escola. Minhas duas irmãs mais velhas se casaram antes de completarem 15 anos. Meus pais encontraram homens para mim, mas eu recusei e disse que não queria me casar”, conta. “Eu não queria viver como minhas irmãs. Eu queria ir para a escola.”

A guia turística conseguiu concluir a escola e foi aprovada no curso de Jornalismo na Universidade de Herat, após se dedicar aos exames, um dos mais competitivos no país. Ela se dedica para que o acesso à educação não seja um privilégio só dela. “Eu ensino as minhas sobrinhas e sobrinhos e ajudo a pagar algumas das taxas escolares e materiais deles. Acredito que essa pode ser uma mudança, já que meus irmãos e irmãs não puderam ter educação.”

Fatima se orgulha da sua trajetória e tem medo de perder tudo por causa da volta do Talibã ao poder. “Foi muito difícil chegar onde cheguei. Batalhei demais, investi tempo e dinheiro com o sonho de mudar de vida e de inspirar outras mulheres. Não posso perder tudo agora”, lamenta.

A primeira guia turística mulher do Afeganistão

Em 2020, Fatima teve a ideia de escrever e publicar textos sobre as principais atrações turísticas de Herat nas redes sociais. A afegã nem sabia que turismo era um trabalho, mas sua ideia era disseminar uma boa imagem do Afeganistão, já que muitas pessoas só associavam ao terrorismo.

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A jovem lamenta que no imaginário de muitas pessoas, principalmente do Ocidente, o Islã ainda é associado ao radicalismo por causa de grupos extremistas.

Todos os dias, ela escrevia um parágrafo sobre os lugares ao seu redor.

Com as frequentes postagens no Facebook, amigos virtuais passaram a interagir, até que um deles, da Ucrânia, enviou uma mensagem e perguntou se ela aceitava apresentar a cidade para ele e um grupo de amigos. “Eu disse que poderia fazer o trabalho e mostrei toda a cidade para ele.”

“Ele gostou tanto que me indicou para trabalhar em uma empresa de turismo, Untamed Borders. Fiz os testes e fui aprovada”, acrescenta. A agência é uma das poucas que organiza viagens ao Afeganistão. 

A família não aceitou muito bem a ideia dela trabalhar com homens e em diversos espaços públicos. “Como eu esperava, foi difícil e assustador no início porque as mulheres normalmente não saem sem estar acompanhadas por um homem no Afeganistão”, diz.

Ao sair nas ruas com os estrangeiros, ela recebia olhares tortos e às vezes xingamentos. Para se manter segura, nunca saía com um grupo tarde da noite.

A renda como guia de turismo ajuda a sustentar sua família e também deu condições para que ela possa cursar uma faculdade. Ela também ensina inglês para 41 meninas em uma escola de refugiados.

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Até maio deste ano, Fatima Haidari já tinha recebido oito grupos de viagens estrangeiras Seu trabalho foi afetado pela pandemia da Covid-19. Agora, ela não sabe se poderá trabalhar novamente.

“Imagina que difícil, estava no segundo ano da faculdade, ensinava inglês, tinha um projeto de rádio para contar as histórias das mulheres afegãs, ajudava a minha família e tudo isso pode não existir mais. Minha vida toda o Talibã esteve fora do poder, as coisas eram diferentes. Estou esperando o que vai acontecer depois, mas não sei como será o meu futuro, por isso quero sair daqui para continuar estudando, eu penso que posso ser uma mulher forte e lutar pelos direitos das mulheres, mas agora, com o Talibã, não quero saber disso.” 

Crise humanitária

Depois da saída dos EUA, só foi preciso cinco dias para que o Talibã chegasse à capital do país depois de dominar todas as demais grandes cidades. Nas regiões, os integrantes do grupo extremista bloqueiam as principais estradas com o poderio militar que os norte-americanos deixaram, já que foi gasto mais de US$ 80 bilhões para treinar e equipar o exército afegão com armas que os insurgentes tomaram.

Em seu primeiro discurso após a tomada de Cabul pelo Talibã, o presidente dos EUA, Joe Biden, não reconheceu nenhum erro estratégico norte-americano e culpou os próprios afegãos pelos desdobramentos vistos no país. “Líderes políticos afegãos desistiram e fugiram. Os militares afegãos desistiram, algumas vezes sem tentar lutar. Isso comprovou que não devemos estar lá. Não devemos lutar e morrer em uma guerra que os próprios afegãos não querem lutar”, disse.

A pesquisadora Karime Ahmad diz que os EUA colecionaram alguns fracassos na tentativa de privar o Talibã de obter verbas, principalmente da plantação e venda de ópio e heroína, já que o Afeganistão continua sendo o maior fornecedor de opiáceos ilícitos do mundo. “Os motivos para esse fracasso são muitos, desde motivos culturais e locais, até as avaliações e estratégias equivocadas utilizadas pelos EUA, reflexo das mudanças políticas, da falta de continuidade e transparência. Nesses 20 anos de guerra, além de ter feito muito pouco em relação à contenção do Talibã, cabe relembrar que, em 2020, assinaram em Doha um acordo de paz com o grupo. Sendo assim, eram nítidas as lacunas políticas e militares que a saída das tropas estadunidenses deixariam no país e, como se observa na história, sempre que um vácuo político dessa dimensão é deixado, esse espaço se torna um terreno fértil para conflitos e será ocupado por alguém”, critica.

A população ainda está descrente com as afirmações do Talibã de garantia da anistia aos que tenham lutado contra eles ou trabalhado para o governo afegão. O grupo não é conhecido por cumprir acordos que firma.

Como ajudar as mulheres afegãs?

Apesar dos brasileiros estarem longe do Afeganistão, muitos estão acompanhando a situação do país pela mídia e redes sociais. E há como ajudar as mulheres do país com doações às organizações de direitos humanos e instituições de caridade que trabalham para frear a crise humanitária. É possível contribuir com qualquer valor pelos sites.

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