Violência psicológica: sutil e cruel

Abuso pode ser comprovado por meio de perícia e costuma vir acompanhado de outros tipos de agressão
EQL COLAB APROVADO
Violência psicológica: sutil e cruel
A violência psicológica é silenciosa e invisível, na maioria das vezes. Não deixa marcas aparentes no corpo físico, mas atinge a saúde mental da vítima, por meio da coação, do silenciamento, da humilhação e do isolamento

No Brasil, a violência doméstica ainda é uma realidade cruel que atinge milhares de mulheres. Com a repentina chegada da pandemia do Covid-19, somando as medidas de isolamento e a crise econômico-social, o número de feminicídios nunca foi tão alto.

É correto dizer que a Lei Maria da Penha foi um divisor de águas na luta pela proteção das mulheres, já que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e prever assistência para as mulheres em situação de vulnerabilidade. O que antes, não existia. Ela abrange e conceitua as diversas formas de violência existentes: a física, a psicológica, a sexual, a patrimonial e a moral. Mas, não as criminaliza. Isso significa que a denúncia de violência psicológica, por não ser considerada crime, era classificada como ameaça ou difamação. As penas para essas infrações são bastante leves, com aplicação de no máximo, um ano de detenção e multa – o que se torna praticamente ineficaz para combater esse tipo de violência.

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A recente edição da Lei n.14.188/21 representa um avanço relevante no combate à violência doméstica ao incluir, no Código Penal, o crime de violência psicológica contra a mulher. A lei estabelece para o agressor a pena de seis meses a dois anos de reclusão e multa. Trata-se de uma pena mais severa e dura para todo aquele que causar dano emocional à mulher, que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e autodeterminação.

A violência psicológica é silenciosa e invisível, na maioria das vezes. Não deixa marcas aparentes no corpo físico, mas atinge a saúde mental da vítima, por meio da coação, do silenciamento, da humilhação e do isolamento. Deixa marcas na alma feminina. É uma forma perversa de agressão que se concretiza por meio de comportamentos repetidos e sistemáticos que objetivam abalar a autoestima da vítima, interferir na sua autonomia e reconhecimento das próprias emoções. É sutil e, assim, de difícil identificação, pois se dá dentro de um relacionamento abusivo, no qual o agressor promove um afastamento da vítima de sua família, amigos e trabalho, deixando-a sozinha e vulnerável, sem ter com quem compartilhar suas angústias.

A situação ocorre sob um falso argumento do agressor de que se trata de um excesso de cuidado com a companheira, de um amor exagerado ou ciúmes desmedidos, que chegam inclusive a restringir sua liberdade de locomoção, com impedimentos de viagens, passeios ou ida ao trabalho. Isso dificulta a mulher de reconhecer que é vítima da violência, já que há uma nítida manipulação do parceiro. O maior obstáculo que as impede de saírem desse ambiente tóxico se dá por meio da imposição do medo, da coação e intimidação da mulher e, em determinados casos, dos próprios filhos. O agressor usa do silenciamento, que consiste na prática de ignorar a vítima, não falando com ela por longos períodos, como uma forma de punição. As humilhações constantes minam a autoestima da vítima retirando seu poder de decisão e inclusive de reação, a colocando em estado de paralisia mental.

O abuso psicológico pode ser, também, extremamente refinado. O agressor manipula os fatos, distorce, mente, banaliza, nega e até mesmo omite informações para que a vítima duvide de sua sanidade mental e passe a questionar a própria realidade. Essa prática é comumente conhecida como “gaslighting”. Em todos esses casos há um prejuízo efetivo à saúde mental, pois são desencadeadas doenças como depressão, síndrome do pânico e distúrbios nervosos. Por mais que não deixe danos físicos visíveis, gera danos psicológicos, que podem se perpetuar ao longo do tempo.

Ela está sempre acompanhada da agressão física, patrimonial, sexual e moral. Os dados mostram que a violência psicológica supera a física em incidência. Não temos a quantia exata de vítimas, uma vez que as mulheres ainda têm muita dificuldade de denunciar ao que são submetidas, por medo de represálias, por vergonha e também pela falta de conhecimento sobre como acessar os mecanismos de ajuda disponíveis.

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Para provar essa violência não é fácil, já que ocorre no ambiente doméstico. Ela pode ser feita por meio da realização de uma perícia psicológica que comprove o dano psíquico ou trauma sofrido. Entretanto, esse exame não vincula o juiz, que também deve analisar depoimentos, testemunhas, ou outras provas, como mensagens de texto ou áudio de celular, vídeos e documentos.

Por causa da gravidade dessa violência, também foi incluído na Lei Maria da Penha o critério de existência de risco à integridade psicológica da mulher. O que isso significa? Que o juiz, delegado ou policial pode afastar o agressor do local de convivência com a vítima caso ele apresente riscos à saúde mental dela. Até a nova lei, isso só era possível com o risco à integridade física. O deslocamento do agressor do lar é uma medida importante para proteção de mulheres que sofrem abusos.

Infelizmente, ainda é comum existir certa resistência em reconhecer esse tipo de abuso. Há uma espécie de preconceito, que vem da cultura machista enraizada na sociedade, que vê a denúncia de violência como uma “frescura”, um “mimimi” ou, até mesmo, um exagero da mulher. Essa linha de pensamento apenas reforça o quão importante é a criminalização dessa prática.

A nova lei também institui o programa Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica – originado da campanha “Sinal Vermelho”. Ele serve para driblar as dificuldades que mulheres têm de irem às delegacias. O protocolo da denúncia é feito por meio de um código: a vítima, que estiver sob situação de agressão, comparece à uma farmácia e apresenta um símbolo em formato de X, preferencialmente feito na palma da mão e na cor vermelha, para um funcionário, que deve acionar a polícia imediatamente. Esse programa promove a integração entre os Poderes Executivo e Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e os órgãos de segurança pública e as entidades privadas para criar um canal de comunicação a partir do momento em que a denúncia for feita. É esperado uma ampliação da campanha ao permitir o convênio com entidades privadas, como empresas, hotéis e mercados.

A violência doméstica contra a mulher só será evitada por meio de leis fortes e eficazes e por campanhas educativas de conscientização, que combatam a cultura machista e de violência existente no Brasil. É preciso que o Poder Público, as instituições governamentais e a sociedade se engajem nessa luta contra a violência.

Samantha Meyer é doutora em Direito Constitucional

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