Primavera das mulheres: entenda como as manifestações de 1968 na França influenciaram o vestuário feminino

Sob o governo conservador de Charles de Gaulle, estudantes marcharam por maior liberdade sexual e equidade no mercado de trabalho
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Mulheres protestando durante manifestações de maio de 1968 na França (Reprodução: Youtube)

Durante toda a história da humanidade – e em todos os cantos do mundo -, movimentos políticos e mobilizações sociais ocorreram de tempos em tempos para que fosse possível a quebra de antigas estruturas e a ressignificação de novos valores. Para as mulheres, foram necessários séculos para que a luta pela equidade de gênero começasse a evoluir.

É nesse contexto de mudanças históricas que a França de 1968 se tornou palco de uma série de manifestações políticas e greves gerais, que acabaram transformando diversos paradigmas culturais. Os primeiros protestos surgiram a partir de reivindicações de estudantes parisienses, muitos deles das universidades de Nanterre e Sorbonne. As mulheres se tornaram o epicentro das mobilizações, reivindicando equidade no mercado de trabalho, liberdade sexual e mudanças em áreas comportamentais, como, por exemplo, na indústria da moda.

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Com o advento da pílula anticoncepcional na década de 1960 e o fim da Primeira e Segunda Guerra Mundiais, quando muitas mulheres tiveram de ingressar no mercado de trabalho para substituir os maridos, que estavam no campo de batalha, no sustento da família, nasceu a necessidade de adaptação do figurino. Além disso, com o surgimento do movimento de contracultura nos Estados Unidos e a Guerra do Vietnã, jovens de todo o mundo clamavam por maior liberdade individual.

Contexto histórico 

Em 1968, a França tinha como presidente Charles de Gaulle, considerado extremamente conservador. O regime político da época também foi um dos fatores culminantes para a explosão dos protestos em 1968, que resultou na maior onda de greves da Europa. Foram 30 dias de manifestações e confrontos com a polícia, nos quais trabalhadores marcharam ao lado de mulheres feministas, na época sob influência de autoras da segunda onda do movimento, como Simone de Beauvoir e Betty Friedan. 

Vanessa Bortolucce, historiadora da imagem, da arte e da cultura pela Universidade Estadual de Campinas, explica como essas manifestações trouxeram transformações nos direitos das mulheres.

“Maio de 1968 surgiu a partir de uma questão política e se espalhou por muitas questões sociais, culturais e de gênero. É preciso lembrar que a política de Gaulle era muito conservadora. Ele teve um papel de muito destaque na Segunda Guerra Mundial, mas no período Pós-Guerra seu governo se tornou muito conservador. Tudo isso culminou nesse descontentamento francês com a política vigente da época, e as mulheres aproveitaram para reivindicar direitos de liberdade e equidade de gênero, principalmente sobre o estereótipo de que o único local para a mulher na sociedade seria no lar. Obviamente, as manifestações se deram em grande parte pelo governo, ou seja, uma questão doméstica, mas tudo também foi uma somatória de questões políticas nacionais e internacionais. Nos Estados Unidos, o movimento de contracultura estava muito forte, a Guerra do Vietnã pairava no ar e essas questões se somavam uma à outra.”, explica ela.

Moda feminina 

As mudanças sociais da época foram, claramente, refletidas em áreas comportamentais e sociais. Na moda, o movimento de contracultura e o surgimento de movimentos feministas começaram a impor transformações na indústria, que desde 1945 tentava retomar a feminilidade da mulher, com peças como saias e longos vestidos, algo que não era bem aceito pelas mulheres que reivindicavam seus direitos em outros espaços sociais e políticos na década de 1960.

Valéria Said, jornalista, professora de Ética e pesquisadora de Moda e Política, analisa as transformações de estilo no mundo feminino que surgiram após as manifestações de 1968. “A moda foi muito importante nos anos 1960, pois foi um divisor de águas. A gente pode ver na história um vestuário quase civil de opressão da mulher, que era sempre vista e reforçada com um papel secundário. Essa moda sempre foi feita para criar um valor simbólico da mulher na sociedade, com peças pesadas, que impediam uma melhor locomoção em diferentes ambientes, fossem eles sociais ou políticos”, diz.

A especialista continua explicando que, nos anos 1960, houve uma quebra desse cenário, com as mulheres indo para as ruas sob uma nova perspectiva, principalmente devido à pílula anticoncepcional. Antes, elas copiavam a indumentária, a forma de se vestir de suas mães. “Tudo era pensado para agradar o sexo masculino de forma feminina e tradicional. Uma das primeiras e mais subversivas peças da época foi justamente a minissaia, inventada pela estilista Mary Quant, grande precursora da moda. Foi nesse tempo também, que refletiu mudanças sociais e maior participação das mulheres, que o público feminino passou a reinventar a calça comprida. Peças masculinas passaram a fazer parte do vestuário das mulheres, o que acabou criando uma falsa ideia de que as mulheres queriam ser como os homens. Mas não era nada disso. Ao olharmos esteticamente para a questão, é possível ver que todas continuavam sendo femininas. Tratava-se de uma liberdade de escolha em relação às peças, fossem elas de qualquer gênero.”

Na indústria da moda, porém, houve até mesmo uma tentativa de retomada de peças que valorizassem uma feminilidade exacerbada das mulheres após a Segunda Guerra Mundial. “Depois dos conflitos, as mulheres passaram a ocupar o local dos homens nas indústrias e  tiveram de se adaptar, usando peças mais confortáveis. Ao perceber isso, a própria indústria tentou reforçar os vestuários anteriores, mais feminilizados. Christian Dior, por exemplo, criou o ‘Look de 1947’, uma tentativa de resgatar essa antiga feminilidade, com vestidos acinturados, uma indumentária extremamente inspirada na belle époque”, lembra Valéria.

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Vanessa explica que a  ideia de uma moda unissex só começa a ficar mais forte nos anos 1970. Jeans desbotados, minissaia, culturas de desapego, modas étnicas com influências budistas, roupas artesanais, tudo passa a ser entrelaçado com o movimento da contracultura. A moda começa a ser vista muito além de uma única fórmula pronta, principalmente para as mulheres, que passam a enxergar novos horizontes mais distantes de estereótipos culturais.

Contracultura e influências nas décadas seguintes 

Nos Estados Unidos, com o movimento de contracultura se tornando cada vez mais forte,  influências “hippies” e preocupações com o meio ambiente se tornaram pautas recorrentes da juventude e se espalharam por todo o mundo. Nas manifestações de 1968, muitas mulheres já refletiam esses valores.

“Como forma de se opor à indústria da moda vigente, que tentava retornar aos valores femininos de vestuário, muitas mulheres usavam peças de brechó, roupas desbotadas, rasgadas, como forma de manifestação política, sob influência do movimento hippie, punk e de contracultura”, destaca Valéria, explicando que a década de 1970 passaria a refletir mais visivelmente muitas mudanças sociais e reivindicações políticas levantadas pelo público feminino ainda durante a década anterior.

“Os anos 1970 refletiram algo muito mais sólido, definido, ainda que fosse o começo da conquista de direitos das mulheres. Foi apenas nessa época que a mulher passou, por exemplo, a poder se divorciar e que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito ao aborto ou a interrupção da gravidez em casos específicos. São dois episódios que refletem as mudanças sociais que passaram a evoluir, ainda que lentamente”, analisa Vanessa.

Valéria aponta, no entanto, que ainda há muito a ser conquistado, especialmente quando pensamos na indústria da moda. “Eu acho que é necessário olharmos para trás e reconhecermos como a luta dessas mulheres possibilitou diversos direitos e conquistas que nós temos hoje. Ainda assim, tratando-se do mundo da moda, ainda há muito a evoluir. Ela ainda não é diversa, embora tente refletir isso em campanhas de marketing. É eurocêntrica e patriarcal, e quando lida com a diversidade, como no caso dos povos indígenas, define outras culturas como algo ‘exótico’”, diz.

Para a especialista, atualmente não precisamos mais lutar para usar calças, mas, ainda que a indústria da moda seja para mulheres, e feita em sua maioria por mulheres, os principais cargos de liderança das grandes marcas são ocupados por homens. “A moda realmente abrange mulheres negras, gordas, deficientes, indígenas?”, pergunta. “Pelo que eu, como jornalista da área vejo, essas pautas são abordadas apenas em campanhas específicas, mas não refletem a indústria verdadeiramente.”

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