Os desafios de um planejamento financeiro atípico

Mães de pessoas com deficiência têm preocupação extra com o futuro dos filhos
JOB_03_REDES_SOCIAIS_EQL_AVATARES_QUADRADOS_PERFIL_v1-02

Flaviana Tertuliana, de 46 anos, tem três filhos adultos, sendo dois deles com deficiência. Formada em serviço social, ela viu a vida profissional ficar de lado para se dedicar à chamada maternidade atípica.

“Não consegui me manter no mercado de trabalho após o nascimento dos meus filhos com deficiência e, hoje, depois de duas décadas, percebi que poderia ter sido diferente se existisse uma rede de apoio para acolhimento. Olhar para trás e fazer o balanço das minhas ações é sentir um mix de sentimentos, que vai desde o ‘fiz o melhor’ até ‘deveria ter me olhado com mais atenção’.”

Além da dificuldade para se dedicar à própria carreira, muitas mães atípicas como Flaviana enfrentam também a preocupação com o futuro dos filhos. As pesquisas que relacionam pessoas com deficiência e mercado de trabalho confirmam esse sentimento.

No ano de 2019, a participação delas no mercado de trabalho era de 28,3%, menos da metade da taxa de pessoas sem deficiência (66,3%). Quando falamos de informalidade, as diferenças também são grandes. Apenas 34,3% dos trabalhadores com deficiência ocupavam postos formais de trabalho, em comparação com 50,9% das pessoas sem deficiência. Esses dados fazem parte da publicação “Pessoas com deficiência e as desigualdades sociais no Brasil”, divulgada em setembro de 2022 pelo IBGE. O estudo foi feito com base na Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2019.

LEIA MAIS:

Essa pouca participação reflete pelo menos dois cenários. O primeiro diz respeito aos brasileiros que, devido às características da deficiência que apresentam, vão ter limitações para estudar e trabalhar. Já o segundo aponta que o preconceito e a falta de inclusão ainda são os grandes obstáculos para que essas pessoas acessem e permaneçam na escola ou no mercado de trabalho.  

A consequência financeira disso tudo também está descrita em outra estatística presente na Pesquisa Nacional de Saúde de 2019: as pessoas com deficiência apresentavam rendimento médio mensal do trabalho de R$1.639, enquanto as pessoas sem deficiência recebiam, em média, R$2.619 por mês. Além disso, 5,1% das pessoas com deficiência viviam abaixo da linha da pobreza extrema, enquanto 18% viviam abaixo da linha da pobreza.

A sobrecarga extra da maternidade atípica

Em comparação com os homens, as mulheres passam quase o dobro de tempo dedicadas aos cuidados de pessoas, ou aos afazeres domésticos. E se a sobrecarga da mulher é uma realidade no Brasil, como aponta o levantamento Estatísticas de Gênero, realizado também em 2019 pelo IBGE, podemos imaginar que ela é ainda maior para mães cujas filhas e filhos apresentam alguma deficiência, em especial aquelas que geram dependência e cuidados diferenciados.

“Meu filho Lucas é independente hoje, porém foi necessária a minha dedicação total para ele ter conquistado tudo isso. Lucas se formou no curso de nutrição em outubro deste ano. Já a Maria Clara depende de mim 90%, porque tem deficiências múltiplas. O trabalho que executo hoje se encaixa no tempo que tenho. Durante 23 anos eu vivi com a dependência financeira do meu ex-marido”, explica Flaviana.

Foto: Flaviana Tertuliana

Por isso, pensar em planejamento financeiro para muitas dessas mulheres se torna quase impossível e a saúde mental delas é um ponto de atenção, como ressalta Flaviana.

“Na verdade, sem essa “anulação”, nossos filhos não têm exatamente o que precisam para se desenvolver com sucesso. É a mãe que corre atrás de tudo, principalmente dos direitos, porque, infelizmente, é necessário levantar ações judiciais para se ter um pouco de dignidade. As mães estudam, pesquisam, questionam, judicializam e não desistem nunca, a não ser quando essa mãe adoece, que é uma realidade que ninguém presta atenção. As mães de pessoas com deficiência têm um índice bastante alto de depressão, síndrome do pânico, pensamentos suicidas, suicídios e morte súbita devido a infarto e AVC.”

Flávia Albaine, defensora pública, ativista e especialista no direito da pessoa com deficiência, reforça a fala de Flaviana. A solidão da maternidade atípica, a falta de rede de apoio e de políticas públicas que deem suporte a essas famílias fazem com que o tema planejamento financeiro para o futuro fique restrito a um pequeno grupo.

“Para dar conta, essas mães que exercem a maternidade atípica se anulam profissionalmente, afetivamente… Isso prejudica muito a saúde mental delas, principalmente a das mulheres de classes mais baixas que não têm rede de apoio. Há poucos estados no Brasil com políticas públicas voltadas para a maternidade atípica. Dando exemplos mais concretos, seriam medidas como a redução na carga horária de trabalho, acesso ao atendimento psicológico e orientação para mães que têm direitos a benefícios do INSS, como o da Prestação Continuada”, detalha a defensora.

O Benefício da Prestação Continuada (BPC), citado por Flávia Albaine, é previsto na Lei Orgânica da Assistência Social e garante um salário mínimo mensal à pessoa com deficiência que não tenha condições de manter o próprio sustento financeiro, nem de tê-lo garantido pela família. É um direito bastante restrito, que, pela regra, é concedido a quem tem renda familiar menor que um quarto do salário mínimo.  

Flávia Albaine explica ainda que a legislação brasileira é avançada quando falamos em pessoas com deficiência, mas, infelizmente, a prática é diferente.

“Nós temos a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que foi incorporada pelo Brasil com status constitucional, temos a Lei Brasileira de Inclusão, conhecida também como Estatuto da Pessoa com Deficiência e temos outras leis esparsas tratando de alguns direitos das pessoas com deficiência. O grande problema é a falta de efetividade prática dessas leis na educação e na saúde, por exemplo.”

Preocupação extra com o futuro

Por causa de todo o cenário de dificuldade de inclusão e, consequentemente, de renda, torna-se difícil para as famílias de pessoas com deficiência terem um planejamento financeiro concreto e eficaz para o futuro. E essa é mais uma preocupação para as mulheres que vivem a maternidade atípica.

“É uma grande angústia que elas vivem. O que elas têm que procurar primeiro é se o filho tem direito a algum benefício social ou previdenciário. Se o filho tiver, buscar isso na via administrativa, mas, se não der certo, na via judicial. Tentar buscar redes de apoio e ajuda, auxílio de instituições públicas e privadas para ajudar no custeio e no tratamento de seus filhos. Por exemplo, tratamento de saúde. Se essa mãe não tiver condições de pagar, ela pode solicitar que o poder público custeie o tratamento de saúde. Se o poder público não custear, ela pode procurar a defensoria pública, por exemplo, para ajuizar uma ação objetivando que o poder público venha a custear.”

Para famílias de pessoas com deficiência cujos caminhos são emocionalmente difíceis, porém mais estáveis financeiramente, ainda é possível falar em planejamento. É o caso de Misa Andrade, empresária e acadêmica em psicologia. Ela já tinha um filho de cinco anos quando nasceu Laurinha, que tem Síndrome de Down e está com 16 anos. Atualmente, ela e o marido têm uma empresa familiar de energia solar, mas nem sempre foi assim.

“A maternidade atípica me paralisou por um tempo em relação à minha vida, mas não em relação a buscar uma vida melhor para minha filha. Se ao nosso lado nós não temos alguém, um suporte, você continua naquele automático. Eu achava que estava certa, buscando o melhor para minha filha. Ela não ficou desamparada, desassistida. Essa culpa eu não carrego, mas, por outro lado, ficaram coisas a desejar, sobre mim, sobre meus outros filhos e minha independência financeira”, lembra Misa.

Hoje, a empresária diz que ampliou o olhar e, além de dividir a empresa de energia solar com o marido, tem um salão de beleza que considera um prazer na vida e faz faculdade de Psicologia. Aliás, a Psicologia entrou na vida dela por meio da terapia, o que permitiu mudar algumas atitudes diante da vida, dando mais perspectivas para si mesma e para o futuro de Laurinha.

“Através da terapia eu consegui essa virada de chave, mas quantas milhares de mães não têm condições de ter essa ferramenta? Falta rede de apoio, faltam políticas públicas e alguém que tome essa mãe atípica pela mão. Eu tive recurso para isso na época, mas muitas não têm”, alerta Misa.

Claro que, mesmo tendo melhores condições financeiras, o medo de um dia não poder mais estar com o filho ou filha com deficiência é comum à maioria das mães atípicas. Para isso, Misa tem se organizado.

“Eu já pensei muito em relação a isso. A minha preocupação é deixar condições para que ela sobreviva sem mim, para que na minha ausência ela tenha recursos para se manter. Eu preparo os meus filhos para isso, para que os irmãos estejam junto dela. Minha preocupação é deixá-la amparada com um lar. Financeiramente, fizemos uma poupança, porque ela não recebe o Benefício da Prestação Continuada (BPC), já que não se enquadra”.  

Ajudar e ser ajudada

Exercer a maternidade atípica sem abrir mão da vida profissional, ou até tendo chances para empreender e planejar o futuro financeiro não é uma tarefa fácil. Precisaríamos que muitas desigualdades sociais fossem reduzidas, porque as estatísticas que trouxemos até aqui indicam o tamanho da dificuldade. No entanto, a vida de muitas dessas mulheres seria um pouco melhor se não faltasse a rede de apoio sobre a qual Flaviana, Misa e Flávia tanto falaram.

Para que esse ciclo vicioso de solidão não se perpetue, muitas mães atípicas buscam se ajudar por meio de grupos que elas mesmas criam. Foi o caso do Mães Coragem Indesistíveis (@maes_coragem_indesistiveis), que surgiu em 2015, em Rondônia.

“O movimento foi criado, a princípio, para ser um grupo de estudo. Eram dez mães que queriam estudar sobre os direitos das pessoas com deficiência para poder exigir que esses direitos fossem efetivados. Toda vez que chegávamos em algum lugar para exigir alguma coisa, éramos questionadas”, relembra Flaviana Tertuliana.

Pouco tempo depois, o grupo passou a ser mais do que um espaço para estudo de leis. Se transformou também em lugar de redescoberta de mulheres que passaram boa parte da vida se apresentando apenas como mães de suas filhas e filhos, esquecendo que também eram pessoas com vontades, sonhos, histórias e direito à felicidade.

“Hoje, no movimento, temos quase 600 mulheres. O principal objetivo é resgatar e empoderar essas mulheres para que elas sejam protagonistas da própria história. O foco é essa mulher, porque precisamos dar essa consciência de que ela precisa estar forte e saudável para lutar pelo que é de direito dos filhos”, conclui Flaviana.

Fique por dentro de todas as novidades da EQL

Assine a EQL News e tenha acesso à newsletter da mulher independente emocional e financeiramente

Compartilhar a matéria:

×