Licença maternidade: um direito que ainda gera culpa

Pesquisa mostra que mulheres consideram que a licença ainda é vista de forma negativa no mercado de trabalho.
JOB_03_REDES_SOCIAIS_EQL_AVATARES_QUADRADOS_PERFIL_v1-02

Camila Soares é jornalista e trabalhava como repórter de uma empresa de comunicação em uma capital brasileira. Ela nos pediu para não publicarmos o nome do lugar onde trabalhava, porque ainda atua como jornalista e tem medo de fechar portas no mercado de trabalho, que por si só já é bastante desafiador.

Após sete anos trabalhando nesta mesma empresa, que, aliás, foi o primeiro emprego após se formar em Jornalismo, Camila engravidou do primeiro filho de forma planejada. Ainda na gestação, percebeu que não seria fácil a jornada de mulher grávida, repórter. Em muitas situações, precisou cuidar da própria integridade, recusando ir para a rua fazer coberturas consideradas perigosas, mas que antes de engravidar sempre fez sem medo. 

O ápice para querer deixar de vez o trabalho na rua enquanto estivesse grávida foi durante um plantão de feriado, quando foi fazer uma matéria em um hospital, mas um tiroteio nas redondezas fez com que todo mundo precisasse se jogar no chão.

“Fiquei muito nervosa, tive medo de acontecer alguma coisa comigo e com meu filho e só queria ir para casa. Liguei para meu chefe de reportagem para dizer que estava deixando o local sem terminar a primeira matéria, mas, ao invés de receber o acolhimento que esperava, ouvi dele ‘agora, com esse tiroteio, você tem duas matérias ao invés de uma só!’. Não acreditei e fui embora assim mesmo”, relembra Camila. 

Esse esforço de impor limites gerou desgastes que não existiam antes e o trabalho se tornou um ambiente tóxico para ela. Camila teve o filho, entrou em licença maternidade por 120 dias e tirou mais 30 dias de férias.

No retorno, a falta de compreensão para uma mãe com um filho bebê continuou. Ao mesmo tempo, a forma como ela podia se dedicar à empresa mudou, porque a vida também estava complemente diferente. Cumpria a jornada de trabalho, mas não conseguia mais dar conta de fazer horas extras como antes. Seis meses após o retorno ao trabalho, Camila foi demitida sob o argumento de reformulação do setor de jornalismo da empresa.

“Apesar de não terem afirmado para mim, tenho certeza de que a demissão teve relação com a minha gravidez e a volta da licença maternidade. Eu estava há mais de sete anos na empresa, entrei lá perto de fazer 23 anos e fui demitida aos 30. Sempre me dediquei, até demais, como todo jovem que está investindo no início da carreira. Lá era um ambiente muito masculino, com gestores também homens, e pouquíssimas mulheres que eram mães. Isso influencia muito. Não tiveram empatia para entender que a mulher pode continuar sendo boa profissional, mas precisa de adaptação e acolhimento”, lamenta Camila. 

Uma percepção coletiva

A situação vivida por Camila aconteceu há 14 anos, mas a ideia de que o mercado de trabalho é difícil para mulheres que decidiram ser mães não mudou. Uma pesquisa realizada, em 2023, pelo Infojobs, HR Tech que desenvolve soluções de tecnologia para o RH de empresas, revelou que 94,7% das mulheres acreditam que a licença maternidade ainda é vista de forma negativa no mercado de trabalho. A mesma pesquisa já havia sido feita em 2022 e o percentual foi de 86%.

A publicitária Júlia Dias concorda com o resultado. Ela já teve duas experiências de licença maternidade, mas em empresas privadas diferentes. Na primeira, tinha pouco tempo no emprego e conta que se sentiu pressionada no retorno, tendo o trabalho testado a todo momento. Na segunda licença maternidade, disse que, desde a gestação, ouvia “piadas” de que “ela só sabia ter filho”.

“Mesmo que não haja qualquer episódio explícito, a recém mãe é colocada à prova, competindo contra o tempo de ausência, tentando provar que o filho recém-chegado não atrapalhará o retorno ao trabalho. Também precisamos explicar que hábitos e programas antigos já não se encaixam mais e ouvimos o tempo todo ‘você não é mais a mesma’. E, realmente, não somos e isso não precisaria ser questionado”, aponta Julia.   

A mulher não deve ser responsabilizada ou penalizada por um direito que é dela. A estrutura social ainda sobrecarrega e discrimina as mulheres, transformando o retorno ao trabalho pós licença maternidade em um momento cheio de dúvidas, preocupações e sobrecarga. Isso agrava a visão negativa que, erradamente, muitas empresas têm sobre a mulher que se propõe a exercer a maternidade. 

“Conciliar trabalho e maternidade continua sendo um desafio para a maior parte das mulheres, que esbarram com preconceito e incompreensão no ambiente corporativo. Até mesmo líderes de Estado se deparam com especulações discriminatórias sobre o assunto, como foi o caso da primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, que teve sua capacidade de trabalho questionada devido a uma eventual gravidez. Isso ocorre porque muitas empresas e muitos profissionais de RH ainda cultivam o conceito de que mulheres que são mães não se dedicam tanto quanto aquelas que não lidam com as preocupações da maternidade. Esse tabu não pode prevalecer e as empresas devem começar a investir no capital humano e no bem-estar de suas colaboradoras”, defende a advogada trabalhista Maisa Rodrigues de Oliveira.

Ainda de acordo com a pesquisa do Infojobs, a dupla jornada de trabalho, nas empresas e no cuidado das tarefas de casa e das atividades dos filhos, é uma realidade para 89,7% das mulheres. Dentro deste grupo, 48,7% não contam com uma rede de apoio ou ajuda de parceiros.

“Infelizmente, ainda há uma crença de que a mulher pode deixar o emprego para cuidar dos filhos, especialmente pela falta de rede de apoio e a questão é trabalhada de maneira errada, o que impacta a empregabilidade feminina”, afirma Ana Paula Prado, CEO do Infojobs.

Licença maternidade: um direito que ainda gera angústia 

As regras para a licença maternidade no setor privado são regulamentadas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS). No setor público, elas podem variar de acordo com a esfera governamental (federal, estadual ou municipal) e o órgão específico. 

“Para ambos os casos, as principais regras são em relação à duração da licença, ao salário durante a licença maternidade e à garantia de emprego. As mães têm direito a 120 dias de licença maternidade, podendo ser estendidos para 180 dias em empresas que aderem ao Programa Empresa Cidadã. Durante o período de licença, a mãe recebe um salário maternidade equivalente ao seu salário integral. A trabalhadora que está no período de licença tem estabilidade no emprego, não podendo ser demitida sem justa causa”, explica a advogada Maisa Rodrigues de Oliveira.

O Programa Empresa Cidadã, citado pela advogada, foi criado pela Lei 11.770, sancionada em 2008, que prevê concessão de incentivo fiscal às empresas privadas que prorrogarem o prazo da licença maternidade de 120 para 180 dias. Já a estabilidade é assegurada da confirmação da gravidez até 5 meses após o parto. 

“Se a demissão ocorrer nesse período, ela será considerada ilegal e a empregada terá direito a ser reintegrada no emprego, com pagamento dos salários e benefícios retroativos desde a data da demissão”, complementa Maisa. 

Em caso de discriminação ou demissão durante o período de gravidez e licença maternidade, Maisa recomenda uma tentativa de solução amigável, por meio de uma conversa com o empregador. Não havendo acordo, é preciso documentar todas as evidências, como cópias de e-mails, mensagens de texto, testemunhas, entre outros elementos e procurar ajuda de uma advogada ou advogado com especialização em direito do trabalho.

Outra orientação é procurar o Ministério Público de Trabalho, responsável por fiscalizar o cumprimento das leis trabalhistas no Brasil, para denunciar a discriminação ou demissão injusta. Também é possível buscar apoio em órgãos de defesa dos direitos da mulher, como a Defensoria Pública da União, e organizações não governamentais que trabalham com essa temática.

“É importante ressaltar que a legislação brasileira proíbe a discriminação contra mulheres grávidas ou em licença maternidade e os empregadores que desrespeitam essas leis estão sujeitos a penalidades legais”, alerta a advogada.

Como mudar essa cultura?

Muitas vezes, a mulher sofre preconceito antes mesmo de entrar em uma empresa, ainda no processo seletivo. No mesmo levantamento do Infojobs sobre a percepção da licença maternidade, 78,4% das participantes acreditam que já perderam uma oportunidade de emprego pelo simples fato de serem mulheres. Além disso, 61,9% delas afirmaram terem enfrentado situações invasivas, onde o foco não eram as habilidades profissionais, mas questionamentos pessoais sobre ser mãe, ou ter o desejo de engravidar.

Segundo Ana Paula Prado, para mudar esse cenário e melhorar o acolhimento de mulheres que engravidam e entram em licença maternidade, são necessárias políticas inclusivas e não apenas uma preocupação com a produtividade. 

“Após um afastamento longo, a profissional precisa de apoio para retomar as atividades. Uma tendência é o oferecimento de mentorias e programas de desenvolvimento. Além disso, empresas empáticas podem oferecer suporte à amamentação e até creche no local, o que permite que trabalhem com mais tranquilidade, sabendo que os filhos estão bem cuidados. Quando a criança ainda é pequena, a empresa pode oferecer diferentes modelos de trabalho, como remoto ou híbrido”, orienta a CEO do Infojobs.

Compartilhar a matéria:

×