Pensão alimentícia: descaso com os filhos passa pela ameaça à “masculinidade”, diz a psicologia

Para especialista, abandono parental tem suas raízes em comportamentos quase pré-históricos
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Keira Burton/Pexels
Criada em 2002, a pensão alimentícia é um direito previsto no Código Civil brasileiro (Foto: Keira Burton/Pexels)

Criada em 2002, a pensão alimentícia é um direito previsto no Código Civil brasileiro nos artigos 1.694 a 1.710. Segundo a lei, parentes, cônjuges ou companheiros podem exigir auxílio financeiro da outra parte responsável para garantir o acesso da criança à educação, saúde e alimentação. Desde 2015, sua inadimplência também é passível de punições legais, incluindo a prisão civil.

Foi por esse motivo que, nesta semana, a Justiça determinou que o ator André Gonçalves, de 46 anos, cumpra prisão domiciliar por 60 dias no Rio de Janeiro. Conhecido por papéis em novelas como “Senhora do Destino” (2004) e “Caminho das Índias” (2009), o artista deve cerca de R$ 350 mil em pensão para a filha Valentina, de 18 anos, fruto do relacionamento com a  jornalista Cynthia Benini. 

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O valor corresponde a quase 14 anos de débitos acumulados a partir da soma de R$ 4,5 mil mensais, número estipulado para suprir as necessidades básicas da jovem na época da separação do casal, em 2007. Sob a alegação de estar sem dinheiro, Gonçalves está apenas aguardando o acionamento da Justiça para iniciar o período de prisão domiciliar. Por ser uma figura pública, o caso chamou a atenção da mídia, mas, longe dos holofotes, narrativas assim são mais comuns do que se imagina. 

Segundo dados levantados em 2018 pela imprensa – números mais recentes divulgados publicamente -, mais de 100 mil processos de cobrança de pensão alimentícia tramitavam nos Tribunais de Justiça do Brasil na época analisada. O processo de Ananda Joice Oliveira, de 32 anos, já fazia parte da estatística nesse período. Sua batalha na justiça começou em 2015, quando seu filho tinha apenas dois anos e nove meses. “Logo após a separação, meu ex-marido se tornou totalmente ausente para o nosso filho, tanto no quesito emocional quanto financeiro. No início, foi definido um valor provisório de 30% do salário mínimo, um valor injusto, visto que ele é um desembargador e recebia mais de 30 salários mínimos.”

Desde então, Ananda trava uma batalha constante, com vitórias e derrotas no meio do caminho. “Ele tem contatos na área e todas as minhas petições são negadas no processo. A única coisa que eu consegui foi a guarda unilateral”, revela. “Já é um grande alívio. Por ser ausente como pai, eu não dependo mais de sua aprovação para definir o futuro do meu filho, como a escola onde ele vai estudar ou a atividade extra que vai fazer à tarde.” Mesmo assim, a conquista de alguns direitos não ameniza as cicatrizes do processo. “Meu filho era super apegado ao pai. Ele perdeu o contato de uma hora pra outra. Foram dias difíceis.”

Já para Angie Cunha, de 38 anos, que se divorciou quando a filha tinha apenas oito meses, o processo de perda de vínculo afetivo foi ainda mais rápido. No início, a bebê chegou a perguntar do pai, mas a ausência abriu espaço para a indiferença enquanto crescia. “Ela já tem nove anos e eu sempre foco no amor que tenho por ela, nunca no abandono”, revela. 

Desde a separação, que aconteceu há quase uma década, mãe e filha vivem juntas, sem rede de apoio. A pensão, que não é paga desde 2018, é um sonho lento que Angie busca conquistar apenas depois de conseguir a guarda unilateral de sua filha. “Os advogados falaram que é melhor entrar com um processo por vez, então estou aguardando a justiça. Meu primeiro objetivo é não depender dele para decidir a vida da minha filha.” Atualmente, nem o genitor, nem sua família têm qualquer contato com a criança. 

Para quem vive na pele o descaso e a demora do poder judiciário, é doloroso lembrar dos momentos mais humilhantes do processo. “Quando minha filha tinha dois anos, eu dei entrada no pedido por pensão alimentícia. Ele pagava atrelado ao salário mínimo, mas de forma inconstante. Alguns meses pagava certo, enquanto atrasava em outros. Um dia, fez um acordo comigo para que eu ficasse com o vale alimentação dele no lugar da pensão. Eu aceitei, já que precisava fazer compras. Após três meses de uso, ele quis o cartão de volta”, recorda Angie. “Eu precisava fazer a compra do mês, então não devolvi e fui para o supermercado. Chegando lá, com toda a compra no caixa e minha filha do lado, o cartão não passou porque tinha sido bloqueado. Precisei deixar a comida para trás e ir embora.” 

Após esse episódio, em meio a deboches, o ex-marido de Angie cortou relações com ela e com a filha e decidiu não pagar mais pensão. “Eles tiram o sustento da boca dos próprios filhos”, resume, sobre a situação. Para suprir o sustento da casa, ela trabalhou como cabeleireira por um tempo e, hoje, vende bijuterias na internet e comanda a página Maternidade Solo Real, que, com quase 40 mil seguidores no Instagram, foi criada em 2019 para dar voz a outras mulheres que estão passando pela mesma situação. “Somos silenciadas o tempo todo, seja pelos genitores, pelo judiciário ou pela sociedade. A página existe para nos dar voz.” 

Nos comentários dos posts, é possível encontrar diversas mulheres desabafando sobre os mesmos problemas: falta de pensão alimentícia, dificuldades de ser uma mãe solo e os impactos do abandono parental. Ananda e Angie – assim como a prisão de André Gonçalves –  não fazem parte de um cenário de exceções no país. No entanto, por que essa postura de abandono parental é tão latente no país? 

O QUE DIZ A PSICOLOGIA 

No âmbito da psicologia, o abandono parental – tanto físico quanto econômico – tem suas explicações enraizadas em comportamentos quase pré-históricos. Segundo a psicóloga Daniela Andrade, nas primeiras formas organizadas de sociedade já era comum que as mães se juntassem em pequenos grupos, enquanto os homens eram encarregados de “desbravar” o mundo. “Nós ainda vivemos isso nos dias de hoje”, explica a especialista. Dessa forma, a criação dos filhos era – e ainda é  – vista como um papel quase totalmente incumbido à figura feminina, enquanto o pai ocupa o posto de provedor. 

Embora esse senso de garantia da subsistência seja o oposto daquele encontrado em situações como a inadimplência das pensões alimentares, ainda assim ambos os comportamentos encontram uma causa comum: a resistência à afetividade. Enquanto as mulheres criam laços intensos com os filhos ainda durante a gravidez, a maioria dos pais possui mais dificuldade em desenvolver um relacionamento parecido. “Tem uma questão cultural na qual o homem sentimental não é bem visto socialmente; ele é colocado como mais fraco perante o restante das figuras masculinas”, explica Daniela. 

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Ainda nessa lógica de hierarquização da força, os afetos se tornam um ponto de vulnerabilidade que é rejeitado por grande parte desse grupo. “O amor é acompanhado por certos tipos de medos – como a perda – que podem ser ameaçadores para esse homem tradicional que não aprendeu a conviver com os próprios sentimentos”, destaca. Assim, a figura masculina tende a permanecer na vida externa, seja ela com uma família para prover ou após o divórcio. 

Neste último caso, a fuga de responsabilidade paterna ainda pode ser encarada como uma reação ao divórcio, pontua Daniela. Caso a separação seja pleiteada pela mulher, podem surgir sentimentos como rejeição e fracasso, fatores que, em grande parte dos casos, podem desencadear uma resposta negativa. “Novamente, sem conseguir lidar com os sentimentos, esse homem opta por punir a companheira por meio de seu ponto fraco, os filhos”, explica. 

Em outros contextos, a família ainda é vista como algo exclusivamente da mulher. Assim, com a separação, o homem deixa genuinamente de achar que precisa colaborar com alguma coisa, iniciando uma nova vida totalmente independente daquele que vivia antes. “Assumir responsabilidades em relação ao outro requer empatia. Requer o reconhecimento do seu papel como participante. Sem vínculo, esse homem deixa para trás tudo o que o lembre de sua masculinidade ‘fracassada’”, conclui.

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