Sauanne Bispo: como o elitismo da branquitude impede os brasileiros de conhecerem outras culturas

Fundadora da agência de turismo Go Diáspora, empreendedora luta por representatividade
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Divulgação
Sauanne Bispo cresceu cercada de ancestralidade, o que definiu a sua percepção de vida (Foto: Divulgação)

Desde a origem de seu nome até a formação de sua família, Sauanne Bispo é cercada de ancestralidade. Seu nome nasceu da junção de duas palavras em iorubá – um dos maiores grupos étnico-linguísticos do continente africano: “babá” (nascido na quinta-feira) e “bwana” (senhor), que resulta em Bawana (senhora nascida na quinta-feira). Para homenagear a sua madrinha e dar uma leve abrasileirada no nome, no entanto, algumas letras foram trocadas de lugar, resultando em “Sauanne”, como foi batizada. 

Em uma busca rápida no Google, não é possível encontrar o significado do nome, mas a empreendedora sabe bem o que ele representa na sua vida: força e empoderamento. “Estar cercada por ancestralidade fez com que eu entendesse, desde muito nova, quem eu sou e onde quero estar. O racismo é algo tão presente na sociedade brasileira que, muitas vezes, nós nos tornamos aquilo que as pessoas dizem que somos. Felizmente, eu cresci sabendo que este é um problema de quem pensa assim. Eu posso estar onde eu quiser”, explica.

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Essa autopercepção de si e do mundo foi fruto de uma criação tão potente quanto a origem de seu nome. “Minha mãe e meu pai se conheceram na diretoria do bloco afro Araketu. Minha madrinha, além de socióloga, participou de uma das primeiras irmandades dos homens pretos do Brasil, além de ter sido vice-presidente de um terreiro de candomblé que é patrimônio nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).” 

Os assuntos conversados dentro de casa – quando não eram falados em iorubá, maneira que sua avó encontrou de se comunicar sem que as crianças entendessem -, sempre partiram de um lugar de contemplação da ancestralidade, fosse ela religiosa ou cultural. A negritude sempre foi motivo de orgulho, algo transmitido naturalmente na criação de Sauanne. 

Ainda muito nova, começou a estudar como bolsista em um colégio particular jesuíta tradicional em Salvador, na Bahia. “Eu ganhei bolsa porque minha mãe era professora do supletivo no período da noite. Era um colégio católico, mas isso nunca fez com que eu esquecesse as minhas origens. Um dia, até levei a minha tia para falar sobre o candomblé em uma aula de religião”, lembra. “Com oito anos, eu corrigia quem me chamava de morena. Não sou morena. Sou negra. Tive muita sorte de poder desenvolver essa autopercepção tão cedo. Muita gente, durante a vida adulta, ainda está passando por esse processo de identificação.” 

Sauanne teve a honra de crescer ouvindo que era uma princesa – pelo menos dentro de casa. Frente à sociedade, no entanto, ela sabia que não era assim que a enxergavam. Só foi ouvir o elogio novamente – fora de seu núcleo familiar – durante um intercâmbio que fez na Louisiana, nos Estados Unidos. “Eu fui para lá exatamente por conta do alto número de pessoas negras no local. Foi onde conheci quatro mulheres de Gana, que causaram um grande choque na minha vida. Conversando sobre a diferença entre os nossos países, elas me contaram que, em seu país, elas realmente eram princesas. E me perguntaram se, no meu, eu não era também. Não consigo esquecer desse diálogo”, diz.  

Até o momento daquele encontro, Sauanne estava bem resolvida com quem era: uma mulher negra formada em estatística que não abaixava a cabeça para o racismo. Mas, após a conversa com as mulheres de Gana, um novo mundo de questionamentos se abriu. Quem era Sauanne como mulher negra em outros países? Quem era Sauanne fora do Brasil? O intercâmbio para Louisiana, que surgiu como uma oportunidade para aperfeiçoar o inglês, acabou se tornando um ponto de virada na vida da soteropolitana. 

NA TERRA DE REIS E RAINHAS 

Após o período de vivência fora do país, Sauanne deixou o seu emprego como coordenadora de análise criminal na Secretaria de Segurança Pública de Salvador e foi viajar pelo mundo. Inicialmente, como tripulante em um navio, função responsável por sua primeira visita ao continente africano. O choque que viveu durante a conversa com as mulheres de Gana se transformou em admiração. Fosse em Gana, em Ruanda ou na África do Sul, ela tinha a sensação de pertencimento ao ver os seus semelhantes em diversas posições sociais – diferente do que sempre constatou no Brasil. 

Após alguns anos trabalhando em alto mar, transformada pela nova ancestralidade que havia conhecido – e diferente daquela que havia aprendido em casa -, Sauanne trabalhou um tempo como trainee em uma organização voltada para o desenvolvimento de projetos de matriz africana em Washington D.C, nos EUA. “Não tinha mais jeito. Minha vida estava direcionada para a África”, brinca. Quando voltou ao Brasil, em 2013, decidiu abrir uma empresa de intercâmbios para propiciar para outras pessoas a mesma experiência transformadora que viveu na Luisiana. Era uma empresa tradicional, que organizava viagens para países da Europa e da América do Norte. Em 2015, isso mudou, e o negócio passou a contemplar também experiências em países do continente africano. 

No entanto, por mais que essa fosse uma ideia inovadora para a época, a empresa não conseguiu se manter por muito tempo. Em 2016, grávida, Sauanne  precisou fechar as portas. “Isso me desesperou por conta do futuro da minha filha. Ela merecia uma vida digna”, conta. “Foi aí que eu me inscrevi em um programa de aceleração de projetos inovadores em Salvador, destacando a minha atuação no continente africano. Eu passei, ganhei mais visibilidade e, em 2019, fui incluída em outra iniciativa de aceleração, desta vez do Facebook.”

A partir de muito esforço – e rebatizada de Go Diáspora -, a empresa renasceu e começou a gerar mais do que estabilidade financeira. Especializada em destinos da diáspora africana, a agência carrega o propósito de apresentar a ancestralidade para todos que se propõem a conhecer a África. “Uma coisa é ouvir dentro de casa que somos princesas, outra é perceber que existe uma sociedade que nos reconhece assim. Chegar em um lugar e se enxergar nos outdoors é muito gratificante. É isso que a maioria dos meus intercambistas sentem. Muitos já aos 30 anos, estabelecidos no mercado de trabalho. Essa é uma massagem no ego que toda pessoa negra brasileira merece”, explica. 

No ano passado, durante uma viagem para a Etiópia e África do Sul com sua filha de quatro anos, Sauanne teve ainda mais certeza sobre essa afirmação. “No avião, ela apontou para a comissária de bordo e disse: ‘Mamãe, ela parece comigo’. Depois do voo, ela teve a oportunidade de tirar uma foto com o comandante, que também parecia com ela. Quando vemos os nossos semelhantes em diferentes espaços, não apenas nos semáforos ou em situação de rua, percebemos que o problema não está na nossa negritude, mas na sociedade. É assim que ganhamos munição.”

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BRASIL BRASILEIRO 

Aos 36 anos, Sauanne já teve a oportunidade de prestar serviço receptivo para mais de 130 realezas africanas em um evento internacional. Infelizmente, também já sentiu medo de ser empurrada nos trilhos do trem em Moscou, na Rússia, onde era enxergada como uma pessoa inferior pela cor da sua pele. Mesmo assim, assume que não há nenhum país pior que o Brasil quando se trata de igualdade racial. “Na Rússia, eu fui seguida e ouvi que negros e brancos não são amigos, mas eu não sou russa. Eu tinha data para voltar. O que eu faço se não me sinto segura no meu país, onde ainda tenho que convencer as pessoas de que racismo não é ‘mimimi’?”, questiona.  

“Aqui, você entra em um restaurante e o garçom, pelo racismo estrutural, quer saber como você vai pagar aquela conta”, diz, lembrando que pretos e pardos representam a  maioria da população brasileira. Após rodar o mundo, Sauanne reconhece o quanto o Brasil ainda está preso no elitismo da branquitude, seja na hora de desconfiar se um cliente negro tem ou não dinheiro para pagar, seja no momento de escolher um país para viajar. “Os brasileiros levam em conta segurança, moeda e cultura quando decidem conhecer um lugar. Se fizer uma combinação dos três, só dá África”, ressalta. 

“Tem vários países europeus atrás do continente africano no quesito segurança. Ruanda, por exemplo, saiu de um genocídio em 1994 e se tornou um dos países mais seguros do mundo segundo o Fórum Mundial. A África do Sul não é só safári. O país é o sétimo maior produtor de vinho do mundo. Falta educação internacional, além de mentes abertas, capazes de identificar muito além do estereótipo e do preconceito. Os brasileiros enxergam o continente sob dois pilares: oportunidade de ver animais e pobreza”, diz. 

Essa é uma visão que Sauanne tenta mudar com a Go Diáspora, embora saiba que a origem de tudo é muito mais complexa do que uma simples educação internacional. Diferente dela, muitos brasileiros não tiveram contato com a ancestralidade e não foram criados para se orgulhar de suas origens. Assim como muitos não foram criados para respeitar a diversidade. “O número de pessoas pretas e pardas está crescendo no Brasil. Por que isso está acontecendo? Estão nascendo mais pretos e pardos? Não. Está crescendo porque só agora as pessoas estão conseguindo se reconhecer e se declarar assim”, explica. 

“Tem muita gente se descobrindo agora, por isso eu fico feliz de ver a minha filha de quatro anos já se reconhecendo. Eu quero me multiplicar até deixar de ser exceção e virar regra, então tento passar isso para outras pessoas também, pelas redes sociais.” O Brasil, em suas palavras, é cansativo, mas precisa de potências de transformação para não continuar assim para sempre – e é por isso que ela ainda não desistiu de seu país. “Não acredito que o racismo vai acabar, mas quero que sejamos empoderados psicológica e financeiramente, então preciso ter um papel nessa mudança.”

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