Por que os uniformes esportivos femininos estão em debate?

Atletas mulheres levantam questionamentos sobre a necessidade e funcionalidade de vestimentas que expõem seus corpos
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Por que os uniformes esportivos femininos estão em debate?
Ginastas alemãs usam calças em estreia nas Olimpíadas de Tóquio em 28 de julho

O uso de roupas que expõem os corpos das atletas voltou a ser discutido durante as Olimpíadas de Tóquio. A equipe de ginástica da Alemanha estreou nos Jogos com um tipo de macacão com calças legging, em vez dos tradicionais collants,  no primeiro domingo da competição (28).  A líder do time de ginastas, Sarah Voss, 21 anos, explicou que foi uma escolha da equipe com o objetivo de promover a liberdade de escolha das vestimentas e encorajar o uso de roupas mais confortáveis.  O grupo usou um uniforme semelhante no campeonato europeu, em abril, como gesto para conter a sexualização do esporte.  

As ginastas alemãs não foram as únicas a desafiarem o dress-code das competições esportivas neste ano. Um pouco antes das Olimpíadas, no dia 22 julho, as jogadoras da seleção feminina de handebol da Noruega foram multadas pela Federação Europeia de Handebol em 150 euros cada uma por usarem shorts no lugar do biquíni durante o Campeonato Europeu de Handebol de Praia. O valor total da penalização é de R$ 9,2 mil.  

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A  EQL conversou com Leda Costa e Aira Bonfim, ambas pesquisadoras do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Leme) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), para entender o que está em debate quando as atletas transgridem os uniformes estipulados pelas confederações esportivas. 

Leda explicou que algumas modalidades definem uniformes obrigatórios que não têm justificativas atléticas para serem usados. “É mais possível que atrapalhem o desempenho, por fazer com que se sintam expostas ou incomodadas, além de restringirem os movimentos”. 

As jogadoras norueguesas, por exemplo, argumentaram que o biquíni atrapalha na movimentação em quadra, mas a comissão europeia de handebol afirmou que os trajes eram “impróprios”, pois não estavam de acordo com os regulamentos de uniformes de atletas definidos nas regras do jogo de handebol de praia da Federação Internacional de Handebol. 

“Essas transgressões aos uniformes são uma declaração por parte das atletas de que são donas do próprio corpo e questiona, sobretudo, a quem pertence o corpo da mulher. É uma forma de dizer que depende delas decidirem qual o melhor modo de realizar um jogo e não a platéia masculina”, afirma Leda, professora visitante da UERJ. 

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A historiadora do esporte, Aira Bonfim, explica que a transgressão feminina às regras impostas pelas convenções esportivas não é uma questão atual, mas sim histórica. A bandeira dos uniformes é mais um reflexo da falta de inclusão das mulheres no esporte. 

“Quando o mundo passou a estruturar as regras dos esportes e competições de alta performance, no século 19, eram majoritariamente homens pertencentes a uma elite econômica que organizava esses jogos –voltados para outros homens. Nesse movimento, não se pensa em inclusão ou conforto”, afirma Aira.“No caso das mulheres, esse movimento de exclusão é dos mais incisivos. O idealizador dos Jogos Olímpicos modernos, Pierre de Coubertin, falava que era uma ‘ojeriza’ às mulheres participarem dos esportes”.

O acesso de mulheres às modalidades esportivas foi um processo lento iniciado a partir das Olimpíadas de 1900. No início, a participação delas era restrita a esportes mais gentis, como arco, tênis e golfe.  Na época, elas representavam apenas 2% dos competidores, disputavam junto com os homens e não podiam receber medalhas caso vencessem as provas. O direito à medalha da vitória só foi possível nos Jogos de Amsterdã, em 1928. 

Com a popularização das modalidades esportivas, a organização de esportes e competições se tornou um negócio, um tipo de empresa com estrutura organizacional e hierárquica. Assim, começam a surgir os dirigentes esportivos com micropoderes para ditar as regras nas organizações dos eventos ou delegações e federações. “Essa estrutura de direção foi e é majoritariamente composta por homens,  que naturalmente passaram a desenhar um mercado esportivo dirigido para outros homens”, comenta a historiadora. 

Assim, quando as mulheres ganham espaço no mundo esportivo, elas passam a compor esse produto voltado para os homens e são transformadas em novas formas de atração para esse público, o que atrela o desempenho esportivo à sexualização dos corpos das atletas. 

Para Aira, esse processo lento de inclusão também retardou outras questões, entre elas o debate sobre os acessórios esportivos, ítens usados pelos competidores para realizar uma melhor performance, como as roupas, talcos para contato e afins. “Hoje são materiais acessíveis e que se adaptam às necessidades dos atletas, mas a ideia de promover conforto durante as competições é uma inovação extremamente recente”.

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“O que vemos agora é um movimento de empoderamento das atletas que está atrelado a outros questionamentos sociais ligados ao direito da mulher em todos os aspectos. O esporte é muito amplo e pode aglutinar temáticas que vão além dele. O movimento de negar expor o corpo está presente em outras instâncias da sociedade, como cinema, novelas e afins”, comenta Leda, que afirma que há mais receptividade e apoio social para esses movimentos. Leda e Aira concordam que as redes sociais têm um alto impacto nesta questão. 

“O aumento do público e a divulgação de episódios de protestos pelas redes sociais atingem pessoas que se identificam com essas questões, independente de serem fãs de esporte ou não”, comenta Aira. 

Ambas acreditam que o movimento de não objetificação do corpo das atletas é algo poderoso. “O esporte é um espaço que depende e valoriza o desempenho corporal, então é adequado e pertinente que esse questionamento surja nessa área, na qual a mulher teve sua participação constantemente proibida, interditada e limitada”, afirma a professora Leda. 

Para Aira, é assustador que a questão ainda seja naturalizada no meio esportivo, uma vez que as mulheres apresentam repertório maior sobre direitos humanos e muitas se reconhecem como defensoras da igualdade e direitos da mulher, o que faz com que essas questões da falta de liberdade e inclusão sejam reconhecidas pela violência que provocam. 

“Os Jogos seguem uma ideia de que tudo é perfeito e harmônico, mas naturaliza diversas exclusões presentes, como a quantidade de modalidades que as mulheres podem participar, o sexismo das roupas, o direito à maternidade das atletas, racismo, a questão da sexualidade  e de gêneros não binários . Então é poderoso quando uma seleção esportiva se posiciona politicamente nesses espaços de grande visibilidade, pois coloca o holofote nos problemas existentes e leva o debate para as pessoas, principalmente quando conseguem um respaldo de suas federações e outras figuras públicas”, comenta a historiadora. 

Por mais mulheres nas direções

“Hoje temos um corpo diretivo de homens que estão há muito tempo nesse lugar de poder, estagnados na ideia de que a mulher esteja sexualizada, porque faz parte do pacote do produto desenhado para o público masculino, condicionando o fato de que ter mulheres nos jogos é um atrativo por estarem com os corpos expostos”, explica Aira. 

As duas pesquisadoras concordam que há um movimento em ascensão de mulheres dentro das direções esportivas, mas ainda é um processo lento e que demanda de muito apoio. No entanto, é uma necessidade para o aumento dos direitos das atletas mulheres e competidores de outras minorias sociais. 

“O fenômeno por busca de direitos só vai ser enfatizado quando as mulheres ocuparem lugares de tomada de decisão. Com o tempo e muita luta isso vai mudar. Estamos vivenciando o início dessa transformação no esporte por meio das atletas de grande visibilidade que com o tempo passam a ter influência nas instâncias de comando”, comenta a professora. 

Aira complementa que, apesar de ser uma transição lenta, é necessária. “O que a gente espera é que elas consigam entrar cada vez mais nesses espaços de comando e passem a ouvir mais as necessidades de inclusão para todas e todos os atletas, porque é fato que as mulheres promovem mais ações inclusivas quando ocupam altas posições”. 

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