Quiet quitting: uma tendência que desafia a felicidade no trabalho

A demissão silenciosa é um conceito que vem aparecendo cada vez mais no mundo corporativo, desafiando relações de trabalho e questionando o limite entre trabalho e vida pessoal
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Você já ouviu falar em “quiet quitting”? No Brasil, o termo tem sido difundido como “demissão silenciosa”. Mas, o que ele significa? E o mais importante: o que essa tendência representa para a atual sociedade?

Embora a palavra “demissão” tenha sido incorporada – mudando a tradução literal que seria algo próximo de “desistência silenciosa” – o “quiet quitting” pouco tem a ver com alguém que tenha tomado a decisão de pedir as contas no trabalho. 

Mas sim, trata-se de um conceito que pretende lançar luz à discussão sobre a medida ideal entre trabalho e vida pessoal. 

Subjetividades a parte, a demissão silenciosa aponta que vale a pena revisitar crenças e comportamentos antigos que vêm sendo reproduzidos, sistematicamente, no mundo moderno.

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Um bom começo é questionar se trabalho e felicidade são dois caminhos essencialmente paralelos. É o que vamos discutir por aqui, mas antes, vamos entender mais sobre essa tendência que vem desafiando as relações no ambiente de trabalho. 

O que é quiet quitting? 

Sabemos que o equilíbrio entre vida profissional e pessoal não é uma discussão nova. No entanto, ela tem ganhado ares mais atuais desde a pandemia da Covid-19, tempos em que o home office confundiu as fronteiras das relações de trabalho. 

De 2020 para cá, o fato é que uma dinâmica corporativa mais intensa se estabeleceu, com profissionais normalizando a “esticada” do expediente. No começo do surto, a justificativa para esse comportamento era o medo do desemprego. 

Mas, após três anos, a sustentação desse ritmo excessivo tem sido considerada como sendo devastadora à saúde física e mental dos profissionais, dando novos contornos ao já conhecido “burnout” – classificado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença ocupacional.  

Tal desequilíbrio escancarou a necessidade de repensar o papel do trabalho na vida das pessoas e, assim, delimitar o tempo dedicado a ele. 

Foi nesse contexto que se encaixou a ideia por trás da “demissão silenciosa”, que se baseia na premissa que diz que os profissionais podem tomar a decisão de cumprir somente com as obrigações profissionais combinadas, sem ter que para isso “viver para trabalhar”. 

Sendo assim, ficam livres para reservar mais tempo para o lazer e a família. E, quando chegam em casa, podem deixar o trabalho para trás sem culpa.

Parece simples, mas nem tanto. A aceitação dessa “virada de chave” não é totalmente unânime entre a sociedade. 

Afinal, da forma como tem sido colocada a questão, o trabalho e a satisfação por trabalhar parecem estar em lados totalmente opostos. 

O caldeirão de gerações no quiet quitting

Se a delimitação clara entre profissão e vida pessoal é encarado para uns como uma evolução natural. Para outros, nem tanto.

Isso porque, claramente, o quite quitting passou a ser um debate que nasceu de um evidente conflito geracional, sendo fomentando com mais força entre a geração Z (nascidos entre a segunda metade dos anos 1990 até o início do ano 2010) do que, propriamente, entre outras gerações.

Grande parte desse aceite se explica pelos impactos que a pandemia causou no amadurecimento desses jovens. Visto que, eles foram privados do convívio nas escolas, universidades e em locais de diversão. 

Somado a isso, essas pessoas já cresceram vendo os pais ou avós trabalhando muito, sem muitas pausas e decidiram que não querem isso para a vida deles. 

Mas, existem outros fatores que devem ser observados nessa dinâmica, conforme aponta a psicóloga Paola Schoqui. 

“A geração Z e os millennials (nascidos entre 1981 a 1995) vivem em tempos líquidos. Muitos começaram a trabalhar já em um modelo remoto, onde tudo acontece rápido. Com isso, eles veem o trabalho de forma entediante, lento na progressão da carreira e sem paciência para esperar o tempo natural de maturação profissional”, aponta.

E na mesma medida em que a pandemia serviu como gatilho para renovar a ideia de equilíbrio, trouxe também um desafio grande para as empresas, líderes e RHs no sentido de trabalhar o engajamento desses profissionais e equilibrar o encontro de gerações dentro do mesmo ambiente.

Conforme destaca a psicóloga, a geração Z, que segundo ela, integra a chamada “geração Tik Tok”, quer tudo acelerado, rápido, num piscar de olhos. No entanto, o mundo corporativo não é bem assim. 

“Hoje temos, ineditamente, o encontro de quatro gerações trabalhando juntas, com práticas, valores e ideias muito diferentes, mas que precisam ser ajustados e calibrados para conviverem de forma harmônica”, destaca a profissional. 

Fazer somente o combinado no trabalho: certo ou errado? 

De acordo com as premissas do quite quitting, as pessoas que adotam essa atitude não querem ser demitidas, mas sim, integrar a vida pessoal e a profissional de acordo com suas necessidades.

Defensores da ideia alegam que se trata de se livrar da “cultura tóxica” das empresas, que vem gerando, cada vez mais, problemas envolvendo a saúde mental da população.

Isso estaria certo ou errado? Paola Schoqui não crava a questão de forma dual, mas sim, prefere levantar algumas análises. 

“Por que fazer somente o mínimo possível? Provavelmente, por estar em um ambiente que não eleva seu potencial e nem te motiva. Consequentemente, não te faz feliz. Sendo assim, penso ser contraprodutivo sentar muito tempo nesta cadeira e empurrar o problema com a barriga”, pondera.

Para ela, em um cenário de insatisfação, as cartas devem ser colocadas na mesa de forma clara, para que ambas as partes – lideranças e liderados – façam um alinhamento.

“O ideal seria ter uma conversa franca com sua gestão, a fim de procurarem um melhor encaminhamento das atividades e expectativas e de dar mais sentido a elas. Afinal, quando vemos propósito naquilo que estamos fazendo, fazemos com mais vigor, energia e esforço”, observa. 

Mas, e se esta conversa não for eficiente? Nesse caso, a psicóloga recomenda como opção a procura de um outro emprego para dar um novo rumo à carreira.

Quiet quitting: renúncia ao crescimento no trabalho?

A dúvida que surge quando se lança luz aos impactos que o movimento pode trazer ao mundo do trabalho é se com o quiet quitting, a sociedade estaria renunciando ao crescimento no trabalho ou se, de alguma forma, essa dinâmica pode ser apenas uma fuga das estruturas conforme estão baseadas hoje.

Na opinião da psicóloga, o cenário pode trazer estagnação profissional. “Ao praticar o quiet quitting, você não abraça novas oportunidades, não adquire novos aprendizados e, com isso, fica difícil crescer e evoluir profissionalmente”.

Segundo ela, basta pensar na analogia de um trem. “Se você ficar parado na estação perde o bonde e fica estagnado. Se entrar nele anda e chega ao seu destino. Mas é durante o caminho que vemos as paisagens bonitas e feias, que ajudam a construir nossa jornada e nos preparam para descer na próxima estação”, complementa.

Demissão silenciosa e a humanização das lideranças 

Na visão de Paola, os líderes são os atores capazes de dar espaço ou cessar a prática do quiet quitting. 

Isso porque, se temos líderes conscientes, humanizados e que prezam pelo equilíbrio pessoal e profissional dos seus colaboradores, dificilmente, eles encontrarão seus liderados praticando a demissão silenciosa.

“Líderes preparados podem dar voz aos anseios de seus colaboradores, sendo a ponte entre a expectativa e realidade. Com isso, se cria uma maior conexão, aumenta o respeito e o elo de confiança, o que favorece a boa relação humana entre todos”, comenta. 

Segundo a psicóloga, se tivermos líderes pouco humanizados, a prática de se fazer somente o combinado se perpetuará e estremecerá ainda mais as relações interpessoais.

Dizendo adeus para antigas crenças

Mas, voltando o foco para o cerne da questão, cabe perguntar: por que ainda é tão difícil para o ser humano manter uma vida equilibrada em todos os aspectos?

Para Paola, a resposta está na percepção equivocada da sociedade em priorizar o esforço antes da sensação de bem-estar. 

“Fomos criados com o discurso de que primeiro temos que ter sucesso para então ser feliz. Ou seja, primeiro temos que passar em uma boa faculdade, tirar boas notas, ter nosso diploma, entrar num bom emprego, ter um bom salário, ser promovido anualmente e etc. para então sermos felizes”, aponta.

Se essa descrição lhe parece uma verdade inquestionável, saiba que existe uma corrente de pensamento, fundamentada em estudos recentes, que apontam em uma direção exatamente oposta. 

“Pesquisas da Universidade de Harvard mostraram que a equação é inversa: primeiro devemos ser felizes para então termos sucesso. O sucesso seria uma consequência de uma vida plena e feliz”, explica. 

Ser feliz de segunda a sexta-feira

Então, o quite quitting tem fundamentos importantes? Ao menos, pode-se dizer que a prática tem ampliado a necessidade de discutir antigas crenças e comportamentos, conforme pondera a psicóloga.

“Estamos caminhando para este futuro, quebrando objeções e pré-conceitos, mas ainda temos enraizada a crença antiga de muito trabalho e pouco bem-estar. A verdade é que podemos conciliar estes períodos de felicidade mesmo dentro do trabalho. Não precisamos ser felizes somente aos finais de semana, mas, sim, de segunda a sexta-feira em horário comercial”, esclarece.

Quite quitting para determinados momentos da vida? 

Se a tal “demissão silenciosa” levanta discussões importantes sobre crenças enraizadas na sociedade, cabe refletir sobre o que estamos perdendo e ganhando na vida quando desejamos mais equilíbrio entre todas as áreas.

E nesse caso, não existe uma resposta uníssona, mas sim, aquela que fará sentido para cada indivíduo. 

Afinal, tudo depende do que é valor para cada um. Para alguns, a prioridade é o trabalho, para outros, a família, para outros, a vida social e tudo isso muda ao longo do contexto da vida, conforme indica a psicóloga. 

“Não existe certo e errado, cada um terá sua preferência no momento e deverá dar peso a elas conforme suas prioridades. Se me dedico muito ao trabalho, preciso entender que algum pilar ficará defasado”, analisa. 

De acordo com ela, quando falamos em equilíbrio, inclui-se todos os pilares. A chave estaria na extensão da renúncia que cada indivíduo está disposto a fazer. 

“O mais importante é se planejar dentro das prioridades. Quanto tempo pretendo fortalecer um pilar em detrimento a outro? Ao responder essa pergunta, fica fácil se planejar para se dedicar a algum deles e medir o próximo passo”, diz a psicóloga.

Quiet quitting e a mulher moderna

E como a mulher moderna se vê em meio às discussões do quite quitting? Seria sinônimo de ter mais tempo para se dedicar aos outros ou a si própria?

Segundo Paola, cabe lembrar que não só para a mulher, mas para todos os seres humanos, a vida é feita de escolhas, que se traduzem em questões que envolvem escolher passar o tempo produtivo e não produtivo e os seus impactos.

Para a profissional, o resultado dessa reflexão pode não resultar necessariamente em uma divisão, mas sim, em uma soma. “Posso escolher ser eficiente e produtiva dentro do horário comercial, entregando além das expectativas e também ter tempo de qualidade para a vida pessoal e vice-versa”, aponta.

Ainda de acordo com a profissional, a obtenção das respostas pode ser facilitada quando uma questão não se opõe à outra, inviabilizando, assim, uma em detrimento à outra.  

“É possível ajudar o próximo como colegas de trabalho, líder, time, fornecedores, clientes e me ajudar. Ao ser produtiva, me sinto capaz, eficiente, elevo minha autoestima e bem-estar e isso tudo impacta na minha vida pessoal”, reforça Paola. 

O mesmo, segundo ela, vale para a vida pessoal. “Conseguindo ser uma pessoa rodeada de boas relações, ser uma boa filha, boa mãe, boa amiga, boa esposa, enxergo minha eficiência e entrega, também melhoro meu bem-estar e felicidade e isso impacta positivamente no meu trabalho”, destaca.

A alternativa para o quite quitting

Se o resultado da divisão consciente entre tempo e esforço para cada área da vida pode somar bem-estar, o quite quitting seria a única ponte para a felicidade corporativa?

Segundo Paola, não, já que a demissão silenciosa pode vir carregada de indiferença, o que pode agravar ainda mais a sensação de infelicidade.

“Passamos, em média, mais de 80 mil horas da nossa vida trabalhando. Como você escolhe passar este tempo: feliz ou infeliz? Impactando ou sendo indiferente? Penso não ser justo consigo mesmo viver nesta última posição”, avalia. 

Para a profissional, a dica para evitar a estagnação profissional é mudar a percepção sobre o ambiente em que se está inserido. E a chave de tudo está na transparência. 

“Converse com seus colegas e gestores, peça ajuda ao RH, movimente-se para estar num trabalho que faça sentido e tenha propósito. Se mesmo assim sentir que este não é seu lugar, escolha buscar um novo rumo para a sua carreira. Afinal, ela é sua e de mais ninguém”, finaliza.

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